CGJ|SP: Tabelionato de Notas – Escritura de compra e venda – Intervenção do Ministério Publico – Desnecessidade – Inaplicabilidade das disposições do Código Civil concernentes às fundações privadas às fundações de Direito Público, às quais se aplicam as regras das autarquias – Isenção de emolumentos não contemplada em lei – Natureza de taxa – Descabimento de discussão acerca da inconstitucionalidade de lei na via administrativa – Recurso provido em parte.

Processo CG 2014/160607
(12/2014-E), digo (12/2015-E)
Registro de Imóveis – Escritura de compra e venda – Intervenção do Ministério Publico – Desnecessidade – Inaplicabilidade das disposições do Código Civil concernentes às fundações privadas às fundações de Direito Público, às quais se aplicam as regras das autarquias – Isenção de emolumentos não contemplada em lei – Natureza de taxa – Descabimento de discussão acerca da inconstitucionalidade de lei na via administrativa – Recurso provido em parte.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:
Trata-se de recurso interposto por Fundação Nacional do Saúde – RUNASA contra a r. decisão de fls. 68/69, que indeferiu o requerimento do lavratura de escritura pública de compra e venda de imóvel sem a intervenção do Ministério Público e com isenção total de emolumentos.
Alega a recorrente que o art. 1º, do Decreto-lei nº 1.537/77, isenta a União do pagamento de custas e emolumentos aos Ofícios de Registro de Imóveis com relação às transcrições, inscrições, averbações e fornecimento de certidões relativas a quaisquer imóveis de sua propriedade ou de seu interesse, ou que por ela venha a ser adquirido. Sustenta que a Lei n° 11.331/2002 é inconstitucional por invadir competência legislativa da União, a quem compete legislar sobre emolumentos notariais, por violar a isonomia e o princípio federativo ao atribuir às autarquias estaduais um benefício negado às autarquias federais, por violar o art. 197 do CTN e por descumprir requisição de autoridade competente, cujo atendimento deve ser provido prioritariamente.
A D. Procuradoria Geral da Justiça opinou pelo provimento em parte do recurso (fls. 102/109).
E o relatório.
De início, observe-se que, como não está em discussão o ingresso de título passível de registro em sentido estrito no Registro de Imóveis, a apelação deve ser conhecida como recurso administrativo, na forma do art. 246, do Decreto-lei Complementar Estadual n° 3/69, aplicando-se o princípio da fungibilidade.
O exame da necessidade de intervenção do Ministério Público na lavratura de escrituras de interesse de Fundação, ainda que essa matéria não tenha sido objeto do recurso, é possível porque a regra tantum devolutum quantum apellatum não é absoluta nos procedimentos administrativos1.
As normas do Código Civil referentes às fundações privadas não se aplicam às fundações públicas, conforme dispõe o artigo 5º, IV e § 3º, do Decreto-lei n° 200/67:
Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se:
(…)
IV – Fundação Pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, património próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes.
(…)
§ 3º As entidades de que trata o inciso IV deste artigo adquirem personalidade jurídica com a inscrição da escritura pública de sua constituição no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, não se lhes aplicando as demais disposições do Código Civil concernentes às fundações.
Celso António Bandeira de Mello lembra que as fundações públicas “são pura e simplesmente autarquias, às quais foi dada a designação correspondente à base estrutural que têm”2.
Na mesma linha:
(…) a Carta da República transformou essas fundações em entidades de Direito Público, integrantes da Administração indireta, ao lado das autarquias e das empresas governamentais, nesse sentido, já decidiu o STF, embora na vigência da Constituição anterior, que “tais fundações são espécie do género autarquia”. (…) a prevalecer essa orientação jurisprudencial, aplicam-se às fundações de direito público todas as normas, direito e restrições pertinentes às autarquias.3,(grifei)
Logo, se o Ministério Público não fiscaliza nem intervém nos atos das autarquias, também não participará nos das fundações públicas.
Alexandre Santos de Aragão pontua que:
“Quanto às fundações públicas de direito privado, o Decreto-lei n° 200/67 é contraditório: no art. 5º, IV, afirma que as fundações públicas são pessoas jurídicas de direito privado; no §3º do mesmo artigo diz que, ressalvada a constituição pelo registro próprio, não aplicar-se-lhe-ão, as normas do Código Civil referentes às fundações. Sendo assim, não são controladas pelo Ministério Público, mas pelo ente político instituidor, uma vez que, ao contrário do que se dá nas fundações particulares, a vontade do instituidor não se desliga deforma definitiva da fundação4”.
Ainda neste sentido:
(…) enquanto no direito privado a fundação adquire vida própria, independente da vontade do instituidor (que não poderá nem mesmo fiscalizar o cumprimento da sua manifestação de vontade, já que essa função foi confiada ao Ministério Público), a fundação instituída pelo Estado constitui instrumento de ação da Administração Pública, que se cria, mantém ou extingue na medida em que sua atividade se revelar adequada à consecução dos fins que, se são públicos, são também próprios do ente que a instituiu e que deles não pode dispor.
Aliás, a fiscalização pelo Ministério Público, com relação às fundações governamentais mesmo as de direito privado, é totalmente desnecessária, pois somente serve para sobrecarregar a entidade com duplicidade de controles que têm o mesmo objetivo. A tutela administrativa a que se sujeitam essas entidades, com o nome de “supervisão ministerial”, já visa assegurar a “realização dos objetivos fixados nos aios de constituição da entidade, a harmonia com a política e a programação do Governo no setor de atuação da entidade, a eficiência administrativa e a autonomia administrativa, operacional e financeira da entidade” (art. 26 do Decreto-lei n°200/67).
(…)
Acresce que, com relação às fundações instituídas por particulares, a função do Ministério Público justifica-se pela necessidade de atribuir a algum órgão público a função de manter a entidade dentro dos objetivos para os quais foi instituída; vale dizer, como a fundação adquire vida própria e nela não mais interfere o instituidor, o Ministério Público assume essa função.
Nas fundações, públicas ou privadas, instituídas pelo Poder Público, a autonomia da entidade não vai ao ponto de se desvincular inteiramente dos laços que a prendem ao ente instituidor; este se encarrega de manter essa vinculação por meio do controle inferno (tutela) exercido pelos órgãos da Administração Direta.
Já Pontes de Miranda ensinava que nas fundações instituídas pelo Poder Público, “há o poder de ingerência do Estado, que se não confunde com o dever de velar exercido pelo Poder Público e que se constitui em característica, da fundação de direito privado” (RF-102/76).5
As citações acima permitem concluir que a participação do Ministério Público na lavratura de escritura pública de compra e venda de imóvel da qual a fundação pública FUNASA figuraria como adquirente é prescindível.
Daí decorre que a melhor interpretação do item 63, do Capítulo XIV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, é no sentido de que ele se aplica somente às fundações privadas.
Quanto à isenção total dos emolumentos, não assiste razão à recorrente.
Esta Corregedoria Geral da Justiça já decidiu que as imunidades concedidas aos entes públicos referem-se somente aos impostos, não abrangendo as taxas – nas quais se inclui a remuneração dos serviços notariais e de registro, conforme entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal6.
Ressalte-se, ainda, que a discussão acerca da alegada inconstitucionalidade da Lei n° 11.331/2002 não é permitida na via administrativa, uma vez que a questão não foi decidida na via jurisdicional, nem houve sua revogação expressa.
Neste sentido é o entendimento do Colendo Conselho Superior da Magistratura e desta Corregedoria Geral da Justiça7.
O estabelecido nos julgados mais recentes é que o controle da legalidade, lato sensu, não pode ser feito nos estreitos limites do procedimento administrativo, até porque a eventual decisão que a reconhecesse projetaria seus efeitos para além do feito onde tivesse, sido proferida, tendo verdadeiro cunho normativo. Disso resultaria, a rigor, um controle in abstractu, que permitiria até fosse suprimida a vigência de determinada lei ou decreto, quando estes fossem considerados ilegais, em sentido amplo, em face da constituição ou em cotejo com a lei regulamentada, respectivamente. Vale dizer que o controle da legalidade em sentido amplo encerra o próprio controle da constitucionalidade. E este, na órbita dos feitos administrativos, implicaria na prolação de decisões cuja ultratividade assemelhar-se-ia a um controle concentrado, próprio das sentenças proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade, que têm competência estabelecida de modo restritivo na Constituição Federal. Lembra-se, nesse sentido, de julgado mais recente do Conselho Superior da Magistratura, merecendo destaque o que segue: “A propósito assentou-se que em face da normatividade da decisão proferida, a recusa a cumprimento de ato considerado inconstitucional significaria, desde logo, em inaceitável alcance, o descumprimento do disposto nos Decretos-leis 1.958/92 e 2.038/83 (Apelação Cível 3.346-0, rel. Batalha de Camargo)”. Nessa mesma direção V. Exa. já decidiu, ao acolher o parecer lançado no Proc. 274/93, no qual ficou estabelecido o seguinte: “Aliás, a tudo acresce um derradeiro argumento, que não deve ser esquecido. E de ser posto que está sedimentado entendimento, no Colendo Conselho Superior da Magistratura, segundo o qual não se exerce o controle da constitucionalidade em procedimentos administrativos, uma vez que decisões proferidas nessa esfera ganhariam alcance extraordinário, por força de seu caráter normativo.” (CGJSP PROCESSO: 2.038/94 LOCALIDADE: Campinas DATA JULGAMENTO: 24/10/1994 Relator: Marcelo Martins Berthe)
Diante do exposto, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de V. Exa. é no sentido de que seja dado provimento em parte ao recurso apenas para admitir a lavratura da escritura sem a intervenção do Ministério Público, desde que recolhidos os respectivos emolumentos na forma do art. 8°, da Lei n° 11.331/02.
Sub censura.
São Paulo, 19 de janeiro de 2015.
Gustavo Henrique Bretas Marzagão
Juiz Assessor da Corregedoria
CONCLUSÃO
Em 20 de janeiro de 2015, faço estes autos conclusos ao Desembargador HAMILTON ELLIOT AKEL, Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Eu, ____(Andréa Belli Freitas), Escrevente Técnico Judiciário do GATJ 3, subscrevi.
Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento em parte ao recurso.
Publique-se.
São Paulo,20 de janeiro de 2015.
HAMILTON ELLIOT AKEL
Corregedor Geral da Justiça
(DJe de 06.02.2015 – SP)
1 STJ – RECURSO ESPECIAL: 612.540-DF LOCALIDADE: Distrito Federal DATA JULGAMENTO: 12/02/2008 DATA DJ: 05/03/200S Relator: Humberto Gomes de Barros.
2 in Curso de Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo: Malheiros, 2010. p. 186.
3 Meirelles. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 360.
4 ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Fundações Públicas e o Novo Código Civil. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RRRB), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 20 dez/jan/fev. 2009/2010, p. 9. Disponível em http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-20-DEZEMBRO-2009-ALEXANDRE-ARAGAO.pdf. Acesso em 19.01.2015.
5 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 494/495.
6 Processo CG nº 382/2004.
7 CSM: Apelações Cíveis nºs 4.936-0, 20.932-0/0; CGJ: Processo nºs 274/93; 2.038/94; (ilegível)