STJ: Resp. Doação Universal. Art. 1.175 do Código Civil de 1916 (Art. 548 do Código Civil). Aplicação em acordo realizado por ocasião de separação judicial. Preceito Ético. Possibilidade. Recurso parcialmente provido.

RECURSO ESPECIAL Nº 285.421 – SP (2000⁄0111801-3)

RELATOR: MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)

RECORRENTE:         JOSÉ FRANCISCO FERREIRA MARÇAL

ADVOGADO:            JOSÉ THOMAZ PERRI – DEFENSOR PÚBLICO

RECORRIDO:            MARIA APARECIDA PINGUIERI

ADVOGADO:            PAULO ROBERTO ALMAS DE JESUS

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DOAÇÃO UNIVERSAL. ART. 1.175 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 (ART. 548 DO CÓDIGO CiVIL EM VIGOR). APLICAÇÃO EM ACORDO REALIZADO POR OCASIÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL. PRECEITO ÉTICO. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

1. A proibição inserta no art. 1.175 do Código Civil de 1916 (art. 548 do Código Civil em vigor) destina-se a impedir que o autor da liberalidade reduza-se a situação de pobreza, em razão da doação. Caráter social do preceito em testilha.

2. A vedação à doação universal realiza a mediação concretizadora do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da Constituição Federal). Recursos financeiros suficientes para que as necessidades elementares da pessoa humana sejam atendidas.

3. Acordos realizados nas separações judiciais são transações de alta complexidade, tendo em vista a gama de interesses sensíveis a serem ajustados. Disponibilidade patrimonial para compor ajustes sobre questões intrincadas. Condescendência econômica de uma das partes. Limitação. Não se podem solucionar problemas de ordem familiar a qualquer custo, máxime, quando o preço a ser pago reflete-se na dignidade da pessoa humana.

4. Incide o preceito ético do art. 1.175 do Código de 1916 (art. 548 do Código Civil em vigor) em acordo realizado, em virtude de separação judicial.

5. Recurso especial parcialmente provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ⁄BA), Nancy Andrighi, Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 04 de maio de 2010(Data do Julgamento)

MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA

(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)

Relator

RECURSO ESPECIAL Nº 285.421 – SP (2000⁄0111801-3)

RELATOR:   MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)

RECORRENTE:         JOSÉ FRANCISCO FERREIRA MARÇAL

ADVOGADO:            JOSÉ THOMAZ PERRI – DEFENSOR PÚBLICO

RECORRIDO:            MARIA APARECIDA PINGUIERI

ADVOGADO:            PAULO ROBERTO ALMAS DE JESUS

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS) (RELATOR): Trata-se de recurso especial interposto por JOSÉ FRANCISCO FERREIRA MARÇAL, com arrimo na alínea “a” do inciso III do art. 105 da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado:

Artigo 1.175 do Código Civil – Disposição em separação consensual, pela qual o cônjuge varão abriu mão da meação, e doação dos direitos de linha telefônica a filho impúbere, na mesma data – Postulação de nulidade de ambas as manifestações de vontade, trazido pelo ex-cônjuge masculino – Embargos infringentes rejeitados, para manter a integral improcedência dos pedidos. (fls. 125)

Sustenta o recorrente violação ao art. 1.175 do Código Civil de 1916, pois as doações realizadas, por ocasião da separação judicial, abrangeram a totalidade de seus bens, deixando-o desprovido de recursos para a velhice.

Alega que a proibição da doação universal é aplicável à hipótese dos autos, porquanto o referido instituto não se restringe ao tipo e a natureza da avença, mas incide sobre qualquer doação que dissipe o patrimônio do doador.

Requer que o recurso seja provido a fim de anular “as doações que o mesmo realizou em favor da ex esposa e filho, nos 02 (dois) momentos alvitrados, especificamente em 14 de janeiro de 1988, nos termos, inclusive, do voto do culto Des. Relator da apelação, que restou vencido, […]”. (fls. 144)

Contrarrazões não apresentadas (fls. 147).

É o breve relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 285.421 – SP (2000⁄0111801-3)

RELATOR:     MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)

RECORRENTE:         JOSÉ FRANCISCO FERREIRA MARÇAL

ADVOGADO :           JOSÉ THOMAZ PERRI – DEFENSOR PÚBLICO

RECORRIDO :           MARIA APARECIDA PINGUIERI

ADVOGADO :           PAULO ROBERTO ALMAS DE JESUS

VOTO

O SENHOR MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS) (RELATOR): Cinge-se a controvérsia a saber se a proibição contida no art. 1.175 do Código Civil de 1916 (atual art. 548 do Código Civil) – óbice à doação universal – incide no acordo realizado em separação judicial.

O egrégio Tribunal a quo, instado a se manifestar, posicionou-se pela inaplicabilidade do art. 1.175 do Código Civil de 1916 nas avenças celebradas, em razão da separação judicial consensual, tendo em vista o caráter negocial da doação, a qual encontra-se desprovida de liberalidade, verbis:

[…]

2. A doação feita pela escritura pública datada de 12 de novembro de 1987 é válida, não tendo ocorrido qualquer infração ao art. 1.175 do Código Civil, na medida em que o doador possuía outros bens – partes ideais em dois outros imóveis e direitos sobre linha telefônica – e nem há indicação que tenha agido com erro.

O mesmo ocorre com relação à suposta doação, resultante da partilha dos bens realizada quando da separação judicial. É que, nesta passo, a partilha tem caráter eminentemente negocial, não se constituindo em mera liberalidade.

A partilha de bens na separação judicial é disposição patrimonial, salientando que os bens que ficaram com a ex-mulher foram doados ao casal pelos pais desta, o que explica, provavelmente, o que convencionaram.

[…] (fls. 91 e 92)

[…]

No tocante à partilha feita quando da separação consensual do casal ora litigante, acertadamente anotou a douta maioria ter ela caráter eminentemente negocial, não se constituindo em mera liberalidade, e lembrou mesmo que os bens que ficaram com o ex-cônjuge feminino haviam sido doados ao casal pelos pais da mulher, o que reforçava a improcedência da ação.

Quanto à doação dos direitos de uso de linha telefônica ao embargado filho, […], a par de merecer ser salientada a pouca expressão econômica de tais direitos, assim fugindo à “ratio essendi” do art. 1.175, do Código Civil, de ver que também ocorreu na data da separação consensual, e sendo este filho menor impúbere, que ficava sob a guarda da mãe, não há como deixar de admitir que também esta disposição de propriedade do ora embargante inseria-se no acerto de vontades buscando a separação consensual do casal.

[…] (fls. 126 e 127)

Verifica-se que o entendimento sufragado pela Corte originária é o mesmo adotado pelo doutrinador Yussef Said Cahali, que se pronuncia pela não incidência da limitação inserta no art. 1.175 do Código Civil de 1916 sobre o acordo realizado na separação judicial:

E, sob esse aspecto, pareceu-nos mais acertado o entendimento no sentido da não incidência do disposto no art. 1.175 do antigo CC (agora art. 548 do Código Civil), em acordo de separação, pois a questão relativa aos bens do casal não encontra limitações fora dos termos da avença. (CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág. 196)

Contudo, este entendimento deve ser revisto, pois a dissipação completa do patrimônio pessoal atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana – art. 1°, III, da Constituição Federal -, uma vez que a ausência absoluta de meios materiais impossibilita a construção e a manifestação da personalidade em suas diversas matizes, além de impor ao individuo a mendicância como meio de vida ou, ainda, a submissão de sua existência à caridade alheia.

Com efeito, a proibição inserta no art. 1.175 do Código Civil de 1916 (art. 548 do Código Civil em vigor) destina-se a impedir que o autor da liberalidade coloque-se em situação de pobreza, por motivo do ato de disposição patrimonial, visto que o estado de miserabilidade voluntária oneraria sobremaneiramente aqueles cujo dever de assistência lhes competem (art. 1.694 do Código Civil) ou, até mesmo, o próprio Estado, o qual teria que  prover recursos para amparar o pródigo em suas necessidades. Avulta, assim, o indiscutível caráter social do preceito em testilha.

Todavia, a vedação somente incide sobre as doações que ocorram, na dicção da lei,  “sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador”, ou seja, o doador, ao dispor de seus bens, deve preservar recursos financeiros suficientes para a sua subsistência.

Discorrendo sobre a prodigalidade do doador, Sylvio Capanema de Souza descortina com maestria a proibição da doação universal:

[…]

Na doação universal, o que se examinará é se o doador reduziu-se à miséria, dispondo de todos os seus bens, fulminando-se o negócio, qualquer que tenha sido a intenção do doador, e ainda que não tenha ele credores a satisfazer.

Assim se estabelece para que se proteja o doador das conseqüências de atos impensados, de impulsos de momento, ou de depressões psicológicas, que o levem a se desinteressar dos valores materiais.

Por outro lado, não haveria nenhum interesse social em se admitir que uma pessoa pudesse se desfazer, voluntariamente, de todos os seus bens, ficando em estado de penúria, para que passasse ela a depender da caridade de terceiros ou da providencia do Estado, onerando a sociedade, como um todo.

A lei impõe, como se vê limites ao impulso generoso, até mesmo para coibir as maquinações captatórias de donatários inescrupulosos, que poderiam induzir alguém a lhes transferir todos os bens.

Há, portanto, e em nome do interesse coletivo, limitação ao direito de doar, o que, em princípio, poderia parecer estranho ao leigo, tenho em vista que a disponibilidade é um dos poderes inerentes à propriedade, nada devendo impedir que o proprietário, sendo maior e capaz, se desfizesse de seus bens.

2. As exceções à regra.

A nulidade da doação só se verificará se o doador não reservou parte de seus bens ou renda suficiente para a sua subsistência.

O dispositivo se presta a diversas interpretações, podendo suscitar situações peculiares, que precisam ser examinadas com cautela.

A matéria, como é evidente, é de fato, pelo que submete ao crivo do exame de prova, a ser feito pelo juiz, diante do caso concreto, e segundo a experiência comum.

O que incumbirá ao julgador aferir é se o doador, após a liberalidade, ainda terá como prover a sua subsistência, sem depender da ajuda de outrem, e aí nos parece residir o ponto nevrálgico da questão.

Pensamos ser irrelevante que da doação resulte uma significativa redução do padrão ou da qualidade de vida do doador, desde que ainda lhe seja possível manter-se pelos seus próprios recursos.

Deverá o julgador tomar como paradigma o homem comum, e suas necessidades mínimas de sobrevivência, ai se incluindo a alimentação, vestuário, moradia e demais itens que assegurem ao doador um mínimo de dignidade de vida.

De nada adiantará, para exame da validade da doação, que o doador tenha reservado bens ou renda, mas que se mostrem insuficientes para assegurar a sua subsistência, segundo os critérios acima referidos.

[…] (SOUZA, Sylvio Capanema de. Comentários ao novo código civil: Arts. 533 a 578; TEXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord). Rio de Janeiro: Forense, 2004, vol. VIII, pág. 186 a 188)

Aliás, não é outro o entendimento de Liliana Minardi Paesani:

A lei estabelece uma limitação ao direito de efetuar doações, protegendo o doador de sua própria imprevidência. A nulidade da doação de todos os bens pode ser alegada por qualquer interessado, inclusive pelos credores.

Encontramos aqui a regra das chamadas “doações universais”. A lei proíbe expressamente a liberalidade plena daquele que dispõe de todos os bens em benefício do donatário. Trata-se de negócio jurídico sujeito a nulidade absoluta e que pode ser demandado por qualquer interessado. Assim agindo, o legislador preserva os interesses do Estado e do próprio cidadão que, num ato destemperado, reduziu a si próprio à miséria.

Só será considerada universal aquela efetuada sem reserva de nenhum benefício para o doador. A doação de todos os bens com reserva de usufruto não se enquadra na categoria de doação universal, pois é admitida pela lei, vez que ampara o doador e goza de ampla aplicação pratica. (PAESANI, Liliana Minardi. Comentários ao Código Civil: artigo por artigo. (coord) SCAVONE JR., Luiz Antonio et al. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, págs. 887 a 888)

Impende registrar, também, a lição de Gustavo Tepedino sobre o tema, o qual, sob a ótica da proteção ao crédito, elucida a finalidade do instituto, bem como discorre sobre as exceções à regra geral:

1. Escopo da norma. Encontradiço o comentário de que a inspiração deste dispositivo é de orem moral, não se concebendo que o doador de forma tão grave sua própria sorte em benefício alheio. Enfoca-se a situação de miserabilidade em que se encontraria o doador, se de todos os bens compõem o seu patrimônio viesse a se despojar, por meio da chamada doação universal.

Muito embora relevante o fundamento, esta não é a única razão da invalidade proclamada no preceito em foco. Outro importante interesse que a lei visa a preservar é o crédito. Por uma razão simples: o patrimônio do devedor tem função de garantia geral dos credores. Despojando-se de seu patrimônio, a miserabilidade pode até não afetar o doador, que, por exemplo, pode viver à custa de terceira pessoa, mas certamente terá graves repercussões nos interesses dos seus credores, os quais, diante do inadimplemento, não terão sobre o que fazer incidir eventual execução forçada das obrigações.

[…]

Resta, portanto, que se o doador se despojar de todos os bens, a doação será nula, por violação do interesse público na preservação do crédito, podendo a nulidade ser invocada por qualquer pessoa, incluindo, por evidente, os credores do doador.

[…]

4. Casos em que se admite a doação da totalidade dos bens. Feito o necessário registro à proteção ao crédito como valor também tutelado pelo dispositivo, cabe dar maior realce à tutela do doador, destacando as duas principais possibilidades de este contemplar o donatário com a totalidade de seus bens.

A primeira hipótese apontada pela doutrina é a reserva de renda suficiente para sua subsistência, o que se operacionaliza pela constituição de usufruto em favor do próprio doador. Aqui há consenso entre os doutos, até pela expressa dicção legal que a consagra, e ampla aceitação pela jurisprudência, como retrato acima.

A segunda hipótese, sobre o qual ocorre fundada divergência, é a de ser possível, sim, a doação de todos os bens, retirando o doador o necessário para a sua subsistência de seus vencimentos, proventos ou subsídios (em que se tratando de agente público assim remunerado) ou de seu salário (em se tratando de empregado), havendo quem entenda que a partir de uma interpretação teleológica se pode afirmar ser plenamente possível a doação universal de bens quando o doador possuir alguma fonte de renda periódica, o que não afronta o art. 548 do CC, tendo em vista que a finalidade da norma estaria preservada, pois a subsistência do doador estaria garantida. Sob uma perspectiva semelhante, equivaleria a afirma-se que a norma que traz a sanção negativa não seria deflagrada por inexistir lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico tutelado (enfocando-se, como tal, apenas a sobrevivência de doador). Note-se que tal perspectiva não seria abalada pela circunstância de tratar-se de norma de ordem pública. De qualquer sorte, como ressaltado anteriormente, o entendimento não é pacífico. (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heolisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código civil interpretado conforme a constituição da república. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, págs. 228 a 231)

Por fim, com o brilhantismo que lhe é habitual, Nelson Rosenvald, analisando o conteúdo ético da regra, assevera:

A norma possui forte conteúdo ético, pois impede que o ser humano seja privado do chamado “patrimônio mínimo”, ou seja, de um mínimo de bens de onde possa extrair rendas ou alimentos imprescindíveis à sua sobrevivência.

A vedação à prodigialidade é uma aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana (art.1°, III, da CF), eis que abaixo de certo patamar material a pessoa perde a sua dignidade e se torna uma coisa, é reificada e instrumentalizada.

Há uma tendência no Estado Democrático de Direito de conceber hipóteses análogas a essa, como na impenhorabilidade do bem de família (Lei n. 8.009⁄90) e na impossibilidade de a reparação do dano atingir o patrimônio mínimo do do incapaz e de seus responsáveis (art. 928 do CC).

Em suma, a vedação à doação universal é uma forma de tutelar a sobrevivência do doador que não mede as conseqüências futuras de suas liberalidades. Lembre-se de que a dignidade não é um conceito pessoal, porém, social, e envolve uma noção de solidariedade.

A doação universal será facultada em três ocasiões: quando houver reserva, de parte do patrimônio que lhe assegure renda; mesmo não havendo reserva, a existência de fontes alternativas de renda que prestigiem o mínimo essencial (v.g., salário, pensão); ou, mesmo se fixado o encargo do donatário, este favorecer ao doador dos alimentos indispensáveis. Normalmente, a reserva parcial do patrimônio é conseqüência do usufruto de parcela dos bens em prol doador, que obterá a renda necessária à sua sobrevivência. Com a morte do doador é extinto o usufruto, consolidando-se a propriedade plena dos donatários.

[…] (ROSENVALD, Nelson. Código civil comentado; PELUSO, Cesar. 2ª ed. Barueri: Manole, 2008, pág. 525)

Desse modo, o art. 1.175 do Código Civil de 1916 (atual art. 548 do Código Civil) realiza a mediação concretizadora da norma constitucional (art. 1°, III, da Constituição Federal), pois, ao não permitir a dissipação completa dos bens do doador, impede a ruína material daquele, resguardando, assim, os recursos financeiros para que as necessidades elementares da pessoa humana sejam atendidas.

É verdade que os acordos realizados nas separações judiciais são transações de alta complexidade, tendo em vista a gama de interesses sensíveis a serem ajustados: a  guarda da prole, o direito de visitas, as prestações alimentares e etc. Corriqueira, também, é a pratica de transigir com o patrimônio a fim de compor ajustes sobre questões intrincadas, as quais jamais seriam resolvidas consensualmente sem a condescendência econômica de uma das partes.

Todavia, o transacionar com o patrimônio resvala em limitações, porquanto não se podem solucionar problemas de ordem familiar a qualquer custo, máxime, quando o preço a ser pago reflete-se na dignidade da pessoa humana.

Destarte, é forçoso convir que o preceito insculpido no art. 1.175 do Código de 1916 (art. 548 do Código Civil em vigor) deve incidir em acordo realizado, em virtude de separação judicial, em face da eticidade que encerra.

Impende registrar que este também é o entendimento perfilhado por Pontes de Miranda:

O acordo sôbre os bens em que fica evidente o prejuízo de uma das partes não deve ser homologado (2° Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 29 de setembro de 1942, R. dos T., 140, 614). O juízo do desquite não é próprio para atos de liberalidade que infrinjam os arts. 1.175 e 1.176 do Código Civil; […]

Se se atribuem todos os bens a um só cônjuge, entende-se que houve partilha e doação, ou partilha e outro negócio jurídico, oneroso, devendo-se respeitar os princípios concernentes ao negócio jurídico que está à base da atribuição. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao código de processo civil: Arts. 600 a 706, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense,  t. VIII, 1959, pág. 97; 104 e 105)

1. Reversão. As doações inter coniuges, bem como as doações de terceiros aos esposos, ou aos casados, estão sujeitas às normas relativas à validade das doações ordinárias. […] São nulas as doações: a) Quanto à parte, que exceda a de que o doador, no momento da liberalidade, poderia impor em testamento (art. 1.155); e ainda que venha testar todos os seus bens. b) Quando consistam em todos os bens, sem reserva da parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador (fls. 1.175). (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, t. 8, pág. 527)

Nesse mesmo sentido, tem-se manifestado Inácio de Carvalho Neto:

Não se pode aceitar também doação que envolva todos os bens do doador, sem reservar a parte, ou renda suficiente para a sua subsistência, doação está é nula, nos termos do art. 548 do Código Civil. Mas tendo o doador rendimentos provenientes de outra fontes que não os bens, possível é a doação de todos eles. (CARVALHO NETO, Inácio. Separação e divórcio. 9ª ed. Curitiba: Juruá, 2008, pág. 509 e 510)

Sobre o tema, ainda, convém ressaltar a lição de Cristiano Chaves de Farias:

Por outra banda, também é admissível a renúncia integral à meação por um dos cônjuges, através de disposição expressa. Entrementes, a cláusula de renúncia integral à meação somente será válida se não compreender a subsistência do doador e, naturalmente, desde que não viole a legítima. É evidente que, também aqui, haverá incidência fiscal, por conta da ocorrência da transmissão patrimonial. (FARIAS, Cristiano Chaves de. O novo procedimento da separação e do divórcio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 100 e 101)

Por fim, impende observar que os tribunais pátrios já adotam tal entendimento:

Em desquite amigável, um dos cônjuges não poderá, em benefício do outro, renunciar à sua meação, a menos que resulte provada, nos autos, a existência de outros bens de sua propriedade particular. (1ª Câmara do TJGB, 19-5-1971, RT 437⁄215)

Partilha – Doação de bens imóveis às filhas – Usufruto da ex-mulher – Nulidade. A doação feita sem reserva de bens ou rendimentos suficiente para a própria subsistência fere o art. 1.175 do CC. A liberalidade não é irrestrita, visando a proteção do próprio doador, e, em ocorrendo doação sem reservas, esta é nula, (6ª Câmara do TJSP, 14-5-1992, RT 684⁄661)

No mesmo sentido, ainda os seguintes julgados: 1ª Câmara do TJRS, 7-1-1969, RT 400⁄398; 7ª Câmara do TJRJ, 6-6-1969, RT 409⁄425; 2ª Câmara do TJSP, 9-8-1988, RJTJSP 116⁄233.

Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso especial, para anular o acórdão recorrido, a fim de que o Tribunal de origem analise a validade das doações realizadas por ocasião da separação judicial, conforme o preceituado no art. 1.175 do Código Civil de 1916 (art. 548 do Código Civil em vigor), especialmente, quanto à existência de recursos financeiros para a subsistência do doador.

É como voto.

Fonte: STJ – Revista Eletrônica de Jurisprudência