1ª VRP|SP: Compra e venda. Vendedores que comparecem na escritura como divorciados. Não ultimada a partilha. Condomínio. Princípio da continuidade não ofendido – desnecessário se faz a requerida partilha de bens. Dúvida improcedente.

DECISÃO

Processo nº: 100.10.014617-0 – Dúvida

Requerente: Décimo Quarto Registro de Imóveis

Conclusão.

Em 22.06.2010, faço estes autos conclusos ao MM. Juiz Gustavo Henrique Bretãs Marzagão. Eu,________, esc., subs.

VISTOS.

Cuida-se de dúvida suscitada pelo 14º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, que recusou o registro da escritura pública de compra e venda pela qual o suscitado e outros adquiriram de Luciano Valney Melo Figueiredo e outros o imóvel matriculado sob o nº 67.068, daquela Serventia.

Aduz o Oficial que, para o ingresso do título é necessário o prévio registro da carta de sentença que decidiu sobre a partilha dos bens do casal vendedor Luciano Valney Melo Figueiredo e Denizia Maria Silva Cardoso, pena de se violar a continuidade. Ainda, que o item 25, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, não permite o registro da alteração do estado civil decorrente da separação sem o da partilha.

O interessado impugnou a dúvida às fls. 33/36.

O Ministério Público opinou pela improcedência da dúvida (fls. 44/46).

É O RELATÓRIO.

FUNDAMENTO E DECIDO.

Apresentada para registro, a escritura de compra e venda do imóvel objeto da matrícula nº 67.068, do 14º Registro de Imóveis, foi devolvida pelo Oficial com a exigência de prévio registro da partilha dos bens do casal vendedor Luciano Valney Melo Figueiredo e Denizia Maria Silva Cardoso.

É controvertida a natureza jurídica do estado dos bens do casal que se separa judicialmente ou se divorcia sem ultimar a partilha.

Há entendimento no sentido de que, antes da partilha, os bens continuam a pertencer a ambos os cônjuges em estado de mancomunhão, em situação semelhante à que ocorre com a herança, mas sem que nenhum deles possa alienar ou gravar seus direitos. Para essa corrente, até a partilha prevalece o estado de mancomunhão; depois, caso se estabeleça um quinhão a cada um dos cônjuges, estar-se-á diante do condomínio.

Já a segunda corrente sustenta que, mesmo antes da partilha, o patrimônio comum subsiste sob a forma de condomínio.

Essa questão foi recentemente enfrentada pelo E. Superior Tribunal de Justiça, nos autos do recurso especial nº 983.450, publicado em 10.02.10. A eminente Relatora Ministra Nancy Andrighi assinalou que:

“O TJ/RS tratou a questão sob o viés do estado de mancomunhão, que somente cederia lugar ao estado de condomínio, depois de operada a partilha dos bens do casal. Eis a fundamentação contida no acórdão impugnado:

(fl. 159 e v.) “Com efeito, a dissolução do casamento ocorreu em 6 de março de 2002 (fl. 12), tendo sido proposta a ação de separação litigiosa, que foi convertida em consensual, sendo acordada a partilha de um dos bens pertencentes ao casal. Restou relegada para momento posterior a partilha do imóvel onde atualmente vivem a virago e os filhos comuns do casal. A decisão que pôs fim ao casamento havido entre as partes transitou em julgado, mas, ao que consta, ainda não foi efetuada a partilha desse imóvel.

Vê-se que o recorrente alega estar a recorrida usufruindo com exclusividade do imóvel do casal, desde a separação em 2002, e permanecendo esse imóvel em condomínio, entende devido o pagamento de locativos.

No entanto, tenho que, enquanto não for procedida a efetiva partilha dos bens comuns, estes pertencem a ambos os cônjuges em estado de mancomunhão, sendo em regra descabida a fixação de indenização em favor da parte que não faz uso dos bens comuns.

E, no caso, tal pretensão se mostra mais descabida quando está claro que o imóvel serve de residência não apenas para a virago mas também para os filhos, que vivem em sua companhia, sendo de destacar, também, que tal condição permanece desde quando foi ajustada a separação judicial do casal.

Ademais, não restou demonstrado nos autos que a recorrida esteja fazendo uso comercial do bem comum do casal, nem que dele tenha qualquer renda, nem que esteja sonegando valores ou, ainda, que, de qualquer forma, esteja postergando a partilha desse bem comum. E o mero fato de persistir este estado de indivisão não é suficiente para se cogitar de enriquecimento sem causa, nada justificando o estabelecimento de qualquer indenização ou a fixação de qualquer encargo.

Friso que a situação é de mancomunhão até que seja elaborada a partilha; um (sic) vez formalizada a divisão dos bens, estabelecendo-se o quinhão patrimonial de cada ex-cônjuge, é que se poderá cogitar de condomínio.

Finalmente, lembro que, para que a questão patrimonial seja resolvida, basta que o recorrente promova a efetiva partilha dos bens.”

Como se vê, as bases fáticas firmadas no acórdão recorrido são claras no sentido de que ainda não houve a partilha de bens do casal que, por acordo homologado em Juízo, relegou a divisão do patrimônio comum para momento posterior. Todavia, o recorrente e a recorrida fizeram constar do mencionado acordo de separação consensual, que o imóvel, objeto deste litígio, seria vendido e que a divisão do produto se daria em partes iguais, estabelecendo inclusive preço mínimo.

Dimas Messias de Carvalho (in Direito de Família, 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 211/212) distingue o estado de mancomunhão do estado de condomínio, com as seguintes considerações:

“Os bens não partilhados após a separação ou divórcio, pertencem ao casal, semelhante ao que ocorre com a herança, entretanto, nenhum deles pode alienar ou gravar seus direitos na comunhão antes da partilha, sendo ineficaz a cessão, posto que o direito à propriedade e posse é indivisível, ficando os bens numa situação que a doutrina denomina de estado de mancomunhão. Não raras vezes, entretanto, quando os bens estão identificados na ação de separação ou divórcio, são partilhados na fração ideal de 50% (cinqüenta por cento) para cada um, em razão da meação, importa em estado de condomínio entre o casal e não mais estado de mancomunhão. Tratando-se de condomínio, pode qualquer um dos cônjuges alienar ou gravar seus direitos, observando a preferência do outro, podendo ainda requerer a extinção por ação de divisão ou alienação judicial, não se cogitando a nova partilha e dispensando a abertura de inventário.”

Como se percebe, no processo em julgamento, constou do acordo homologado em Juízo a manifestação expressa da vontade de ambos os ex-cônjuges no sentido de vender o referido imóvel, sendo o produto dessa venda dividido na fração ideal de 50% para cada um, o que, por consequência, importa em reconhecer o estado de condomínio entre o casal quanto ao bem que pretende o recorrente receber valor correspondente a locativos.

Dessa forma, cessada a comunhão universal pela separação judicial, o patrimônio comum subsiste sob a forma de condomínio, enquanto não ultimada a partilha. Nesse sentido, o REsp 254.190/SP, de minha relatoria, DJ de 4/2/2002.

Assim, enquanto não dividido o imóvel, a propriedade do casal sobre o bem remanesce, sob as regras que regem o instituto do condomínio, notadamente aquela que estabelece que cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa, nos termos do art. 1.319 do CC/02. Assim, se apenas um dos condôminos reside no imóvel, abre-se a via da indenização àquele que se encontra privado da fruição da coisa, indenização essa que pode se dar mediante o pagamento de valor correspondente a metade do valor estimado do aluguel do imóvel. “

Independentemente da posição que se adote – até porque não há maiores detalhes dos termos da separação e divórcio nos autos – o deslinde do presente caso é o mesmo, porque as diferenças jurídicas entre o estado de mancomunhão e de condomínio não interferem na continuidade registral ora examinada.

Os ex-cônjuges, ora vendedores, são os únicos titulares de domínio do imóvel, e ambos participaram do ato (v. Matrícula fls. 29/30 e escritura pública de compra e venda de fls. 07/09).

Destarte, no que diz respeito ao princípio da continuidade, a venda do imóvel feita depois do divórcio, mas antes da partilha, em nada se diferencia da realizada durante a constância do casamento, porque em ambas os titulares de domínio são os mesmos e participaram do ato.

De acordo com Afrânio de Carvalho, o princípio da continuidade:

“…quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente” (Registro de Imóveis, Editora Forense, 4ª Ed., p. 254).

Na mesma senda, Narciso Orlandi Neto, in Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de Oliveira, pág. 55/56, observa que:

“No sistema que adota o princípio da continuidade, os registros têm de observar um encadeamento subjetivo. Os atos têm de ter, numa das partes, a pessoa cujo nome já consta do registro. A pessoa que transmite um direito tem de constar do registro como titular desse direito, valendo para o registro o que vale para validade dos negócios: nemo dat quod non habet”.

O princípio da continuidade é tratado pela Lei nº 6015/73 em seus arts. 195 e 237, in verbis:

“Art. 195 – Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.”; e

“Art. 237 – Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.”

Portanto, da mesma forma que, juntos, poderiam alienar o imóvel durante a constância do casamento, podem fazê-lo depois de separação mas antes da partilha, pois, repita-se, os titulares de domínio continuaram a ser os mesmos.

Diversa seria a hipótese se apenas um deles figurasse como vendedor no título. Nesse caso, seria indispensável a prévia partilha, e seu respectivo registro, para que o destino do imóvel e a forma de divisão entre os ex-cônjuges fossem conhecidos.

Assim, para o caso ora examinado, mostra-se prescindível o prévio registro da partilha dos bens do casal o que, na prática, seria redundante e implicaria custos desnecessários aos interessados, fato já consignado nos autos da dúvida nº 100.10.000215-2, suscitada também pelo 14º Oficial de Registro de Imóveis, e que, portanto, deveria ser observado pelo Oficial, dada a similitude dos fatos.

Não bastasse o precedente desta Corregedoria Permanente, há ainda os colacionados pelo Ministério Público no r parecer de fls. 44/46, em especial a apelação cível nº 079158-0/3, assim ementada:

“Registro de Imóveis – Dúvida. Escritura pública de venda e compra de parte ideal de imóvel. Possibilidade, após a averbação da separação judicial. Desnecessidade de ingresso prévio na matrícula da partilha dos bens comuns.”

Constou do voto do eminente relator que:

“A jurisprudência deste Conselho Superior da Magistratura atualmente é no sentido de que a separação judicial põe termo ao regime de bens, transformando a comunhão até então existente em condomínio, permitindo a alienação dos bens pelos co-proprietários, desde que averbada a alteração no estado civil, independentemente de prévio ingresso no fólio real da partilha dos bens comuns. Lembre-se com Ademar Fioranelli, um dos estudiosos das questões registrarias, ser “pacífico que nas separações, ou divórcios, inexistindo a partilha dos imóveis, nada impede que, mantida a comunhão dos imóveis agora “pro indiviso”, ambos os condôminos alienem a propriedade a terceiros, com preferência do outro condômino. Aos Oficiais basta atentar para a averbação obrigatória, antes da prática dos registros, das alterações do estado civil, exigindo o documento hábil consubstanciado em certidão do assento civil das alterações a teor do que dispõe o art. 167, II, n. 5, c.c. o parágrafo único do art. 246 da Lei 6.015/73″, observando que “julgados recentes do Colendo Conselho Superior da Magistratura paulista, no sentido de que nada obsta que, averbada a alteração do estado civil de separado ou divorciado, com a mudança do estado de comunhão para condomínio, ambos promovam a alienação o bem a terceiros, sem necessidade de exibição de formal de partilha para exame e eventual partilha ou atribuição a eventual prole, já que não cabe ao registrador estabelecer raciocínios hipotéticos” (Ap. Cív. nº 23.866-0/0-Catanduva- SP, Ap. Cív. nº 23.756-0/8-Campinas-SP)” (in “Direito Registral Imobiliário”, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001, pág. 92)” (grifou-se).

No caso em foco, tanto a separação judicial quanto o divórcio foram averbados, sob os nºs 04 e 05, na matrícula, restando inteiramente cumpridas as exigências delineadas no precedente supra.

Infundada, por conseguinte, a recusa do Oficial quanto a este aspecto, na linha do primoroso parecer do Ministério Público.

A dispensa da partilha implica a da exigência de se exigir o recolhimento de ITBI porque partilha não houve nem haverá.

Consigne-se, por fim, que a invocação da nota do item 1,”a”, 25, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, pelo Oficial, é indevida porque se refere às sentenças que decidem sobre partilha de bens imóveis, situação não incidente no presente caso.

Posto isso, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo 14º Oficial de Registro de Imóveis, para determinar o registro do título prenotado sob o nº 540.704.

Para os fins do art. 203, II, da Lei nº 6015/73, servirá esta de mandado, nos termos da Portaria Conjunta nº 01/08, da 1ª e 2ª Varas de Registros Públicos da Capital.

Nada sendo requerido no prazo legal, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 22 de junho de 2010.

Gustavo Henrique Bretas Marzagão

Juiz de Direito

Fonte: Classificadores INR | SP n° 123 | 05.07.2010 (Diário da Justiça Eletrônico n. 123 de 05.07.2010).