Comunicado CG nº 688/2012 (Ementa – Registro de Imóveis – complementação do título após sua prenotação – impossibilidade – dúvida prejudicada – Lei nº 11.977/09 – nova ordem jurídica no campo da regularização fundiária urbana – incidência mesmo quando os ocupantes são titulares de domínio de fração ideal – Recurso não conhecido.)

COMUNICADO CG Nº 688/2012

A CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA divulga, para conhecimento geral devido à importância da matéria, o voto proferido pelo Exmo. Sr. Corregedor Geral da Justiça acolhido pelo E. Conselho Superior da Magistratura por unanimidade em 22/03/2012.

Apelação Cível nº 3529-65.2011.8.26.0576

Apelante: Ministério Público do Estado de São Paulo

Apelado: Município de São José do Rio Preto

VOTO Nº 20706

EMENTA – REGISTRO DE IMÓVEIS – complementação do título após sua prenotação – impossibilidade – dúvida prejudicada – Lei nº 11.977/09 – nova ordem jurídica no campo da regularização fundiária urbana – incidência mesmo quando os ocupantes são titulares de domínio de fração ideal – Recurso não conhecido.

Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, que se insurge contra a r. sentença de fls. 279/282, que julgou improcedente a dúvida inversa suscitada pelo Município de São José do Rio Preto, e autorizou o registro do projeto de regularização fundiária do núcleo habitacional “Residencial Jéssica” na matrícula nº 9.904, do 1º Oficial de Registro de Imóveis daquela Comarca.

Sustenta o apelante, em preliminar, irresignação parcial que tornou prejudicada a dúvida; no mérito, inaplicabilidade da Lei nº 11.977/09, incidência da Lei 6.766/79, existência de lotes com área superior a 250 m2, impossibilidade de outorga de legitimação de posse para quem já detém domínio, e violação dos princípios da continuidade e da legalidade. Por fim, sugere que novo pedido de regularização seja feito pelo apelado com fulcro no Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

A Procuradoria Geral do Município apresentou contrarrazões de apelação às fls. 323/340.

O r parecer da Procuradoria Geral de Justiça é pela remessa dos autos à Corregedoria Geral de Justiça e pelo não provimento do recurso (fls. 345/349).

Manifestaram-se o apelado e a Procuradoria Geral do Município (fls. 350/352 e 375/376).

É o relatório.

Observe-se, de início, que o feito foi adequadamente processado como dúvida porque o título recusado pelo Oficial de Registro de Imóveis (parcelamento decorrente do projeto de regularização fundiária) é passível de registro em sentido, e não de averbação, conforme dispõe o art. 58, e § 1º, da Lei nº 11.977/09:

“Art. 58. A partir da averbação do auto de demarcação urbanística, o poder público deverá elaborar o projeto previsto no art. 51 (que é o projeto de regularização fundiária) e submeter o parcelamento dele decorrente a registro.

§ 1o Após o registro do parcelamento de que trata o caput, o poder público concederá título de legitimação de posse aos ocupantes cadastrados.”

No mesmo sentido, o art. 288-F, da Lei de Registros Públicos:

“O parcelamento decorrente de projeto de regularização fundiária de interesse social deverá ser registrado na matrícula correspondente”

Correto, por conseguinte, o encaminhamento dos autos ao C. Conselho Superior da Magistratura, na forma dos arts. 64, VI, do Decreto-lei Complementar Estadual nº 3/69, e 16, V, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Verificados o procedimento e a competência recursal, passa-se ao exame da questão posta.

O Município de São José do Rio Preto pretende registrar o parcelamento decorrente do projeto de regularização fundiária previsto no art. 58, da Lei 11.977/09.

O título foi inicialmente apresentado ao 1º Oficial de Registro de Imóveis de referida Comarca, mas foi recusado em 20.05.10 pelas razões expostas na nota de devolução de fls. 24/27.

Cessados os efeitos da prenotação na forma do art. 205, da Lei nº 6.015/73, e item 36, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, o Município de São José do Rio Preto, em 24.01.11, suscitou dúvida inversa, sustentando o cumprimento de algumas exigências e o descabimento de outras.

Os autos foram, então, encaminhados ao 1º Oficial de Registro de Imóveis, onde o título recebeu, em 22.02.11, nova prenotação (fls. 157), seguida de nova qualificação negativa (fls. 148/156).

Antes de os autos seguirem ao Ministério Público, mas já depois da prenotação do título, o interessado no registro, ora apelado Município de São José do Rio Preto, juntou novo documento denominado “Declaração de Conformidade Urbanística e Ambiental nº 085/02/07 – 00001/11” (fls. 219/220), com o fim de substituir a anterior declaração de fls. 94, que acompanhara o título prenotado, porque o número de lotes havia sido informado com equívoco.

Ocorre que o título, depois de prenotado, não pode ser complementado por documentos, sob pena de prejudicar a dúvida, conforme entendimento deste Conselho Superior da Magistratura:

“Evidencia-se, de modo incontroverso, que o original do título registrando deixou de ser apresentado tempestivamente, o que não fica suprido ou convalidado (ao contrário do entendimento exposto pela digna Juíza Corregedora Permanente a fls. 45 e 153) com uma posterior juntada no curso do procedimento (aqui verificada a fls. 53/151). Acerca da hipótese, este Conselho já tem posição firmada, o que se verifica na Apelação Cível nº 43.728-0/7: “Pacífica a jurisprudência deste Colendo Conselho Superior da Magistratura no sentido da necessidade de apresentação do título original, como decidido na apelação cível nº 30.728-0/7 da Comarca de Ribeirão Preto”. Como se nota do mesmo julgado, incabível é a complementação documental no curso do procedimento de dúvida: “… o requisito da exibição imediata do original diz respeito ao direito obtido com a prenotação do título, direito que não enseja prazo reflexo de saneamento extrajudicial de deficiências da documentação apresentada”. Prossegue-se: “Se fosse admitido cumprir exigência durante o procedimento, estaria aberto caminho para uma injusta prorrogação do prazo da prenotação que, muita vez, viria em prejuízo dos eventuais detentores de títulos contraditórios”. No mesmo sentido, o decidido nas Apelações Cíveis nº 441-0, 2.177-0, 4.258-0, 4.283-0, 8.235-0, 8.705-0/6, 8.926-0/4, 10.483- 0/1, 10.961-0/3, 12.439-0/6, 13.820-0/2, 16.680-0/4, 17.542-0/2, 17.586-0/2, 18.427-0/5, 73.868-0/0 e 74.974-0/0.” (Apelação Cível nº 0000002-61.2010.8.26.0602, grifou-se).

Portanto, o título – com os documentos que o formam – deve ser apresentado de uma só vez, não se admitindo complementação depois da prenotação, sob pena de ensejar indevida prorrogação do prazo da prenotação em prejuízo de eventuais detentores de títulos contraditórios.

É importante observar que a vedação incide tanto no caso em que a juntada do documento ocorre para apresentar a via original do título prenotado quanto no que se pretende substituir um dos documentos que compõem o título prenotado, hipótese em exame.

Destaque-se, ainda, que o documento apresentado tardiamente pelo apelado modifica a própria essência do objeto do título que fora prenotado e qualificado pelo Oficial de Registro de Imóveis, na medida em que altera de 186 para 172 o número de lotes objeto da regularização.

Não se olvide, ainda, que o documento apresentado a destempo não passou pelo crivo do Oficial de Registro de Imóveis, de modo que também o princípio da instância restaria violado caso se aceitasse a complementação documental.

A dúvida está, por esta razão, prejudicada, e não por irresignação parcial, porque o interessado, ao suscitar a dúvida, cumpriu todas as exigências que reputava pertinentes, deixando para o debate apenas as controvertidas. Não houve, destarte, concordância parcial. Diversa seria a hipótese se, depois da segunda prenotação, o interessado atendesse ou anuísse com alguma exigência, o que não ocorreu.

Conquanto prejudicada, nada impede – em razão da amplitude e do interesse social que envolvem o caso – o exame das exigências constantes da nota devolutiva a fim de nortear futuras prenotações da mesma ou semelhante natureza.

Ao prenotar e requalificar o título durante o procedimento da dúvida inversa, o Oficial de Registro de Imóveis de São José do Rio Preto reconheceu o atendimento de algumas exigências, mas insistiu na pertinência das demais (fls. 148/156).

Assim, foram consideradas atendidas pelo Oficial de Registro de Imóveis as seguintes exigências: a) correção do memorial descritivo; b) inclusão das medidas de desenvolvimento das esquinas das vias públicas e da área superficial de cada lote; c) alteração do solo de rural para urbano; e) desbloqueio da matrícula em que se pretender efetuar o registro do projeto de regularização; e f) alvará de regularização municipal (fls. 148/146).

Resta a análise das exigências controvertidas, começando-se pela que afasta a aplicação da Lei nº 11.977/09 na regularização ora em exame.

Na nota devolutiva e nas informações prestadas no procedimento da dúvida inversa, sustentou o Oficial de Registro de Imóveis, com base no art. 47, VI, que referida Lei só se aplica aos casos em que a área está ocupada por posseiros, sem alcançar os assentamentos ocupados por titulares de fração ideal do terreno.

Sem razão, porém.

A Lei nº 11.977/09, mais conhecida por ter criado o Programa Minha Casa Minha Vida, trouxe nova realidade também para a questão da regularização fundiária urbana, objetivando remover os obstáculos e as deficiências existentes na legislação e disposições normativas em vigor, que vinham se mostrando insuficientes para cuidar desse problema de amplitude nacional.

Diversos foram os mecanismos introduzidos no ordenamento jurídico para simplificar, conferir maior celeridade e segurança às regularizações fundiárias, que passaram a gerar efeitos desde logo, haja vista que a Lei nº 11.977/09 entrou em vigor na data de sua aplicação (art. 83), afastando, para as regularizações fundiárias de que cuida, a incidência das disposições legais e normativas vigentes com eles incompatíveis (art. 2º, § 1º, da LINDB).

Estabeleceu-se, destarte, uma nova ordem jurídica no campo da regularização fundiária urbana, tendo o legislador divido-a em duas: a) de interesse social, hipótese ora em exame; e b) de interesse específico.

No que diz respeito à regularização fundiária urbana de interesse social, hipótese em exame, para que se possa demonstrar a dimensão da nova sistemática criada, mostra-se oportuno citar algumas de suas principais particularidades, a saber: a) incidência sobre imóveis particulares e públicos (art. 47, III, VI, VII); b) eficácia da Lei independentemente de prévia regulamentação pelo Município (art. 49, parágrafo único); c) ampliação do rol dos legitimados a promovê-la (art. 50); d) incidência em áreas de preservação permanente (art. 54, § 1º); e) conversão da legitimação de posse em propriedade pelo Oficial de Registro de Imóveis sem a intervenção do Poder Judiciário (art. 60); f) possibilidade de o Município reduzir o percentual de áreas destinadas ao uso público e da área mínima dos lotes definidos na legislação de parcelamento do solo urbano para os assentamentos consolidados antes da Lei nº 11.977/09 (art. 52); g) realização de obras de implantação de infraestrutura básica e de equipamentos comunitários pelo poder público, bem como sua manutenção, antes de concluída a regularização jurídica das situações dominiais dos imóveis (art. 55, parágrafo único); h) cindibilidade da regularização (arts. 51, § 3º e 57, § § 8º e 10º ); i ) auto de demarcação urbanística (art. 47, III e 56); j) legitimação de posse que confere direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia e que depois será convertida em propriedade (arts. 59 e 60); l) isenção de custas e emolumentos para o registro do auto de demarcação urbanística, do título de legitimação e de sua conversão em título de propriedade, bem como dos parcelamentos oriundos da regularização fundiária de interesse social; m) possibilidade de regularização de glebas parceladas para fins urbanos antes da Lei nº 6.766/79; n) tramitação do procedimento no registro de imóveis (arts. 48, III; 50, parágrafo único; 57 e §§; 58; 60 e 65); o) conversão da legitimação da posse em domínio pelo Oficial de Registro de Imóveis (art. 60); p) prescindibilidade do atendimento dos requisitos da Lei nº 6.766/79 para o registro do parcelamento decorrente de projeto de regularização fundiária de interesse social (art. 65, parágrafo único); q) regularização das glebas parceladas para fins urbanos anteriormente 19 de dezembro de 1979 (art. 71); r) possibilidade de extinção, pelo Poder Público, dos contratos de concessão de uso especial para fins de moradia e de concessão de direito real de uso firmados anteriormente à intervenção na área, para viabilizar obras de urbanização em assentamentos irregulares de baixa renda e em benefício da população moradora (art. 71-A); s) o registro da legitimação de posse (art. 167, I, 41, da LRP); t) a averbação do auto de demarcação urbanística (art. 167, II, 26, da LRP); e u) possibilidade de alcançar a parte ou o todo de um ou mais imóveis, ainda que de proprietários distintos (art. 56, § 5º e 288-G, da LRP).

Como se vê, as alterações da Lei nº 11.977/09 são estruturais e de grande potencial de êxito, o qual só será atingido se os operadores do Direito empregarem-nas com desprendimento dos conceitos antigos e com a real vontade de regularizar os milhares de assentamentos irregulares em todo o país.

Colhe-se dos mecanismos citados que o legislador manteve na Lei nº 11.977/09 a tendência de se deslocar para as Serventias Extrajudiciais o que antes tinha de passar necessariamente pelo crivo do Judiciário.

Foi assim com a Lei nº 10.931/04, que introduziu a retificação de área direta nos Registros de Imóveis, e com a Lei nº 11.441/07, que permitiu a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa.

É por isso que a Lei nº 11.977/09 estabeleceu como um de seus princípios o estímulo à resolução extrajudicial de conflitos (art. 48, IV) e definiu que o procedimento de regularização fundiária urbana deve ocorrer na Serventia de Imóveis desde a averbação do auto de demarcação até a conversão da legitimação da posse em domínio, restando ao Judiciário o exame de pontuais divergências durante seu trâmite.

A regularização fundiária, de acordo com o art. 46, da Lei nº 11.977/09, consiste:

no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”

Dos dois tipos de regularização fundiária disciplinados pela Lei, interessa, para o caso em exame, a de interesse social, que é a que recai sobre os assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por população de baixa renda (art. 47, VII).

Pressupõe-se a existência de um assentamento irregular, que é a ocupação inserida em parcelamento informal ou irregular, localizada em área urbana pública ou particular, utilizada predominantemente para fins de moradia (art. 47, VI).

Frise-se que a Lei fala, nos dispositivos citados, em “ocupação” e não em “posse”. E a razão é simples: visa-se tutelar e regularizar o lugar em que a pessoa habita, mora, reside, e não apenas aquele do qual tem posse, pois nem sempre se reside neste.

Ainda sobre a ocupação, note-se que não se trata de prerrogativa exclusiva do possuidor, pois também o titular de domínio de fração ideal não localizada pode, mormente nos casos de assentamentos irregulares, ocupar local determinado onde fixou sua moradia.

O problema é que o titular de fração ideal, conquanto possa exercer seu direito sobre o todo e cada uma das partes do imóvel, não pode exercê-lo com exclusividade sobre a parte individualizada em que reside, pois seu título não lhe confere esse direito.

Necessita, por essa razão, da adequada titulação que lhe assegure o direito, mormente contra terceiros, de habitar o espaço ocupado, para que ali possa viver sem o receio de ser retirado sem justa causa.

Portanto, sua situação jurídica, ao menos neste particular, é idêntica à do ocupante possuidor, haja vista que ambos são desprovidos de título hábil que lhes assegure permanecer no local em que habitam. Logo, não há como sustentar, sem violar a isonomia, a inaplicabilidade da Lei nº 11.977/09 para o titular de domínio de fração ideal de assentamento irregular.

A prevalecer a tese restritiva sustentada pelo Oficial de Registro de Imóveis, enquanto, de um lado, os posseiros teriam seus lotes regularizados pelos instrumentos jurídicos introduzidos pela Lei nº 11.977/09, de outro, estar-se-ia condenando os titulares de fração ideal, um a um, a trilhar a longa e onerosa via da usucapião.

Mas, ainda que o domínio viesse a ser declarado na via da usucapião, as demais questões relativas à habitação, ao acesso aos bens e serviços públicos e ao meio ambiente equilibrado – itens integrantes não só do direito à moradia, mas da própria dignidade da pessoa humana – não seriam enfrentados e solucionados em razão dos conhecidos limites das ações individuais.

Demais disso, por se tratar de forma originária de aquisição da propriedade, a usucapião não respeitaria qualquer planejamento fundiário, de modo que perpetuaria a desordem habitacional, social e ambiental no local do assentamento, na contramão do que preconiza o comando Constitucional da função social da propriedade.

É por isso que a questão da regularização fundiária deve ser enfrentada e solucionada de modo global e planejado como previu a Lei nº 11.977/09, e não por meio de doses homeopáticas comprovadamente insuficientes como a usucapião.

Atento a tais circunstâncias é que o legislador, por meio da Lei nº 12.424/11, alterou o art. 59, da Lei nº 11.977/09, e deixou expresso, no § 2º, que a legitimação de posse também será concedida ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou frações ideais:

A legitimação de posse também será concedida ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou frações ideais, devidamente cadastrado pelo poder público, desde que exerça seu direito de propriedade em um lote individualizado e identificado no parcelamento registrado”

Como se vê, a nova redação do art. 59 espancou qualquer dúvida eventualmente existente quanto à incidência da Lei nº 11.977/09 nos casos de assentamento irregular ocupados por titulares de domínio de frações ideais.

Observe-se, ainda, que o art. 52, da Lei nº 11.977/09, ressalvou sua incidência nas regularizações de assentamentos anteriores à sua publicação, e que o parágrafo único, do art. 65, dispensou o atendimento dos requisitos constantes da Lei nº 6.766/79 quando a regularização fundiária for de interesse social.

No que diz respeito à participação dos interessados na forma do art. 48, III, da Lei nº 11.977, observe-se que aludida participação foi inserida como princípio geral da regularização fundiária, e não como regra de uma ou outra fase da regularização, de modo que deve ser entendida como a faculdade que os interessados têm de, querendo, acompanhar, intervir e formular requerimentos em qualquer de suas fases.

Não se trata, por conseguinte, de participação obrigatória em cada uma das diversas fases da regularização, o que terminaria por inviabilizá-la, tendo em vista a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de se intimar cada uma das centenas (ou milhares) de pessoas ocupantes do assentamento irregular em regularização, lembrando-se que nem sempre os moradores constituem uma associação que os represente, e que nem sempre todos os moradores fazem parte dessa associação. Isso sem falar nos custos que ocupantes teriam de suportar com eventual aconselhamento jurídico para cada etapa, haja vista que não se trata de matéria de alcance do leigo.

Portanto, para que o princípio em questão alcance a sua maior efetividade, a interpretação que se deve dar ao art. 48, III, é que se trata de uma faculdade que a lei conferiu aos interessados de participarem da regularização em curso apenas quando reputarem conveniente a intervenção.

Isso porque a Lei, ao discriminar no art. 50 os legitimados para promover a regularização fundiária urbana, partiu da premissa de que agirão sempre em favor dos interessados, sendo redundante, a cada fase, exigir a ratificação destes para os atos daqueles. Assim, a ausência de manifestação dos interessados deve ser entendida como não oposição.

No caso em exame, busca-se a regularização fundiária do núcleo habitacional denominado “Residencial Jéssica”, que conta com quase 200 lotes. De acordo com a certidão da matrícula (fls. 95/102), foram alienadas e registradas (até a época em que se determinou o bloqueio da matrícula) 47 frações ideais não localizadas do terreno, a maioria com 200m2, tendo as demais sido negociadas por meio de contratos particulares sem maiores formalidades.

O valor das vendas, a localização do terreno-mãe, e as próprias circunstâncias dos autos revelam que os adquirentes são pessoas de baixa renda, que imaginaram estar comprando lotes individualizados e localizados onde constituiriam suas moradias.

Essa situação, embora de aparente condomínio (indesejado, frise-se), gerou, em verdade, assentamento irregular ocupado por pessoas de baixa renda nos moldes preconizados pela Lei nº 11.977/09.

Lícita, portanto, a pretensão da Municipalidade de São José do Rio Preto de regularizá-lo com base nas normas da novel legislação que cuidam da regularização fundiária de interesse social.

E, no que diz respeito à classificação do tipo de regularização fundiária, note-se que cabe à Municipalidade, sob sua responsabilidade, definir se a regularização é de interesse social ou de interesse específico, presumindo-se que observou todos os requisitos legais ao fazer o enquadramento. Esse o espírito que se extrai do Processo CG nº 2007/11287:

“No mais, diante do auto de regularização trazido pelo Município, sob inteira responsabilidade deste, com menção à inclusão no Programa Cidade Legal, ter-se-á como presumida a observância de todas as orientações dadas pelo Comitê Estadual de Regularização. Nunca é demais lembrar, a propósito, que, em tema de registro de parcelamento do solo urbano, a orientação firmada por esta Corregedoria Geral da Justiça é a da realização de controle de legalidade meramente formal, com base nas aprovações dos órgãos competentes (Proc. CG n. 933/2006 e Proc. CG n. 5.064/2008). Dessa forma, se a legislação estadual em vigor redefiniu a competência dos órgãos estaduais para a aprovação da regularização dos parcelamentos do solo e demais conjuntos habitacionais urbanos, fazendo com que esta se concentre nos Municípios aderentes ao Programa Cidade Legal, sob orientação do Comitê Estadual de Regularização, tal posicionamento normativo estadual deve ser observado no registro dos empreendimentos regularizados, sem possibilidade de questionamento, na esfera administrativa, da legalidade material das normas recém-editadas, seja à luz da legislação federal que trata da mesma matéria, seja, até mesmo, à luz da própria legislação estadual que referidas normas pretendem regulamentar.”

A exigência de que o requerimento de registro do título traga o reconhecimento de firma do Secretário Municipal de São José do Rio Preto também não procede, haja vista que o título não se confunde com o requerimento que o transporta, e que, como bem lembrou a Douta Procuradoria Geral de Justiça, o que se registra é o título e não o requerimento de registro dirigido ao Oficial de Registro de Imóveis. Assim, fica claro que a exigência contida no art. 221, II, da Lei nº 6.015/73, recai apenas sobre o título.

Também a exigência de aposição do carimbo do Programa Cidade Legal não consta do art. 3º, § 1º, do Decreto 52.052/2007, indicado pelo Oficial de Registro de Imóveis:

“À Secretaria Executiva do Programa Cidade Legal incumbe receber e protocolar os projetos e documentos apresentados pelos interessados, gerenciando sua tramitação até os trabalhos finais da regularização, orientação e apoio técnico nas ações municipais de regularização de parcelamentos do solo e de núcleos habitacionais.”

No que diz respeito à quebra da continuidade, note-se que o Município não precisa ser titular de domínio para efetivar a regularização fundiária de interesse social, conforme expressa autorização dos arts. 50, da Lei nº 11.977/09 e 288-A, da Lei nº 6.015/73:

“Art. 50. A regularização fundiária poderá ser promovida pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios e também por:

Parágrafo único. Os legitimados previstos no caput poderão promover todos os atos necessários à regularização fundiária, inclusive os atos de registro.”; e

“art. 288-A. O registro da regularização fundiária urbana de que trata a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, deverá ser requerido diretamente ao Oficial do registro de imóveis e será efetivado independentemente de manifestação judicial, importando:

I – na abertura de matrícula para a área objeto de regularização, se não houver;

II – no registro do parcelamento decorrente do projeto de regularização fundiária; e

III – na abertura de matrícula para cada uma das parcelas resultantes do parcelamento decorrente do projeto de regularização fundiária.

§ 1o O registro da regularização fundiária poderá ser requerido pelos legitimados previstos no art. 50 da Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, independentemente de serem proprietários ou detentores de direitos reais da gleba objeto de regularização.”

Ressalve-se, ainda sobre a continuidade registral que, de acordo com o art. 47, § 1º, da Lei nº 11.977/09, nesta fase do registro do projeto de regularização fundiária não ocorre a transferência de domínio, o que somente se dará com a conversão da legitimação da posse em propriedade:

“A demarcação urbanística e a legitimação de posse de que tratam os incisos III e IV deste artigo não implicam a alteração de domínio dos bens imóveis sobre os quais incidirem, o que somente se processará com a conversão da legitimação de posse em propriedade, nos termos do art. 60 desta Lei.”

Bem por isso ressalvou a Municipalidade que o registro ora perseguido, se efetivado, não alterará a titularidade no registro de imóveis, ou seja, os titulares de domínio continuarão a ser os mesmos. Assim, não há que se falar em quebra da continuidade.

No que diz respeito ao tamanho da área dos lotes, note-se que a Lei nº 12.424/11 revogou o inciso III, do parágrafo único, do art. 59, da Lei nº 11.977/09, que dispunha que a legitimação de posse não seria outorgada para lotes com área superior a 250 m2.

Por fim, observe-se que o art. 213, § 11, IV, da Lei nº 6.015/73, dispensa a prévia retificação da descrição do imóvel na matrícula para o registro do projeto de regularização fundiária de interesse social:

“§ 11. Independe de retificação:

IV – a averbação do auto de demarcação urbanística e o registro do parcelamento decorrente de projeto de regularização fundiária de interesse social de que trata a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009”

Assim, a despeito da prejudicialidade da dúvida, as exigências ora examinadas não mais poderão constituir óbice ao registro pretendido em caso de reapresentação do título.

Isto posto, dá-se por prejudicada a dúvida e não se conhece do presente recurso.

José Renato Nalini

Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.J.E. de 25.05.2012)