CSM|SP: Registro de Imóveis – Instrumento particular de compromisso de compra e venda de unidade condominial – Desqualificação para registro – Comprovação de quitação dos débitos condominiais – Exigência não mais justificável diante da revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002 – Concordância tácita – Dúvida Prejudicada – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N° 0019751-81.2011.8.26.0100, da Comarca da CAPITAL, em que é apelante PAUL MARIUS ANDERSEN e apelado o 10º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS da referida Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do Desembargador Relator, que fica fazendo parte integrante do presente julgado. Participaram do julgamento os Desembargadores, IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, SAMUEL ALVES DE MELO JUNIOR, ANTONIO JOSÉ SILVEIRA PAULILO E ANTONIO CARLOS TRISTÃO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Direito Privado e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 12 de abril de 2012.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO

REGISTRO DE IMÓVEIS – Instrumento particular de compromisso de compra e venda de unidade condominial – Desqualificação para registro – Comprovação de quitação dos débitos condominiais – Exigência não mais justificável diante da revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002 – Concordância tácita – Dúvida Prejudicada – Recurso não provido.

O apelante, inconformado com a desqualificação para registro do instrumento particular de compromisso de compra e venda de imóvel urbano (fls. 24/28), no qual aparece como promitente comprador do imóvel objeto da matrícula n.º 94.392 do 10.º Oficial de Imóveis (fls. 05/06), requereu a suscitação da dúvida pelo Registrador, que a providenciou, mas mantendo a qualificação negativa, pois, alega, as exigências questionadas têm respaldo na regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 (fls. 02/03).

Com a impugnação, o apelante afirmou que, em razão de uma das exigências feitas, realizou o pagamento das contribuições condominiais vencidas, mas o síndico do Condomínio Edifício Forest Hills se recusa, orientado pela proprietária, promitente vendedora, a entregar certidão de quitação dos débitos condominiais (fls. 54).

Depois da manifestação do Ministério Público (fls. 76/77), o ilustre juiz sentenciante deu por prejudicada a dúvida, porquanto o interessado não discorda das exigências feitas pelo registrador, mas assinalou que seria julgada procedente, se superado fosse o obstáculo processual, porquanto, destacando o seu posicionamento em outro sentido, o Colendo Conselho Superior da Magistratura “firmou entendimento no sentido de que a norma prevista no parágrafo único, do art. 4º, da Lei nº 4.591/64, não foi revogada pelo atual art. 1.345, do Código Civil” (fls. 79/80).

Inconformado com o resultado em primeiro grau, o recorrente interpôs apelação pretendendo julgamento improcedente da dúvida, com determinação para o registro do instrumento particular de compromisso de compra e venda de imóvel urbano, sustentando, inclusive, que o parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 foi revogado pelo artigo 1.345 do Código Civil (fls. 83/86).

Recebido o recurso em seus regulares efeitos (fls. 89), a Douta Procuradoria Geral da Justiça propôs o não provimento do recurso (fls. 97/99).

É o relatório.

O apelante, na impugnação, não se pronunciou sobre a prescindibilidade da certidão negativa de débitos condominiais, mas apenas abordou os esforços empreendidos para a sua obtenção (fls. 54), a revelar a concordância tácita com as exigências feitas pelo registrador.

Logo, descaracterizado o dissenso, o exame da dúvida resta prejudicado, na linha da convicção esposada pelo ilustre magistrado sentenciante (fls. 79/80), até porque, diante do efeito preclusivo, não é admissível inovar em sede recursal, como pretendeu o apelante, que, tardiamente, cogitou da revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002.

Por outro lado, se superado fosse o obstáculo processual, a desqualificação, para registro, do instrumento particular de compromisso de compra e venda de imóvel urbano (fls. 24/28), respaldada pela respeitável decisão impugnada (fls. 79/80), não mereceria prevalecer, de acordo, inclusive, com o entendimento pessoal do juiz sentenciante (cf. sentença proferida nos autos do processo n.º 100.09.165632-6, em 21.08.2009), que, ressalvando-o, acedeu ao atual posicionamento do Colendo Conselho

Superior da Magistratura.

A compreensão atualmente vigente – expressa, por exemplo, na Apelação Cível n.º 158-6/2, julgada em 25.03.2004, relator Desembargador José Mário Antonio Cardinale; na Apelação Cível n.º 769-6/0, julgada em 14.12.2007, relator Desembargador Gilberto Passos de Freitas; e na Apelação Cível n.º 990.10.278.563-7, julgada em 05.10.2010, relator Desembargador Munhoz Soares -, comporta revisão, apesar dos substanciosos fundamentos em que lastreada.

Com a entrada em vigor do novo Código Civil e, mormente, do seu artigo 1.345 , a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 foi revogada. Para chegar à referida conclusão, contudo, é necessário enfocar as características das obrigações reais e a sua eventual ambulatoriedade.

As obrigações reais, conforme Fernando Noronha, “impõem a quem seja proprietário de uma coisa, ou titular de outro direito real de gozo sobre ela (ou às vezes até de uma mera situação possessória) o dever de realizar uma prestação, necessária para harmonização do exercício do seu direito real com o de outro direito real, de pessoa diversa, incidente sobre a mesma coisa, ou sobre uma coisa vizinha.”

Também chamadas obrigações propter rem (por causa da coisa), caracterizam-se, segundo Luciano de Camargo Penteado, pela sua causa aquisitiva, assentada na “titularidade de uma situação jurídica de direito das coisas”, e não, assim, na manifestação de vontade, na lei ou no enriquecimento sem causa .

Elas, consoante Manuel Henrique Mesquita, têm origem no estatuto de um direito real, ao qual subordinada a relação jurídica de soberania estabelecida entre o titular e a coisa e que, por conseguinte, “compreende ou engloba não só os poderes que são conferidos ao sujeito de um ius in re e as restrições ou limites a que a sua actuação deve obedecer, mas também as vinculações de conteúdo positivo a que se encontre adstrito e que tanto podem consistir em deveres decorrentes de normas de direito público, como em obrigações stricto sensu,” obrigações reais, derivadas de normas de direito privado que impõem uma prestação de dare ou de facere.

Portanto, a obrigação de pagar as contribuições condominiais, impostas aos condôminos – proprietários, a quem equiparados, para os fins do artigo 1.334 do Código Civil, e por força do § 2.º desta disposição legal, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas -, qualifica-se como propter rem: deve-se por causa da coisa (artigo 1.336, I, do Código Civil); “a situação de direito real é causa eficiente próxima do surgimento da obrigação”.

Para Caio Mário da Silva Pereira, trata-se de uma obrigação acessória mista, em cujo plano está situada a obligatio propter rem, “pelo fato de ter como a obligatio in personam objeto consistente em uma prestação específica; e como a obligatio in re estar sempre incrustada no direito real”: em outras palavras, porque “a um direito real acede uma faculdade de reclamar prestações certas de uma pessoa determinada.”

Agora, com o advento do Código Civil de 2002, a obrigação dos condôminos foi, no plano do direito positivo, ampliada – em prestígio de jurisprudência consolidada -, pois, nos termos do seu artigo 1.345, “o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios.”

A positivação de tal regra, porém, confirma – pois, caso contrário, seria despicienda -, a intransmissibilidade da obrigação propter rem de dare, que, na realidade, ontologicamente, à vista de sua natureza, não contempla, por si, os débitos nascidos antes da assunção de direitos sobre a coisa: quer dizer, o novo titular de direitos sobre a coisa não responde por tais débitos pretéritos.

As obrigações reais de dare não importam, em regra, responsabilidade pelas dívidas constituídas previamente à aquisição de direitos sobre a coisa, ao contrário das obrigações reais de facere, que, então, acompanham a coisa, transmitindo-se ao sucessor, inclusive a título singular, independentemente de manifestação de vontade e do conhecimento de sua existência.

No elucidativo magistério de Manuel Henrique Mesquita, “devem considerar-se ambulatórias todas as obrigações reais de ‘facere’ que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa que constitui o objecto do direito real”, isto é, transmitemse aos adquirentes, porque resultam imediatamente da aplicação do estatuto do direito real, porque o seu cumprimento representa interferência direta na coisa submetida a tal estatuto e porque, cessada a soberania do alienante sobre a coisa, a realização da prestação por ele fica impossibilitada.

Sob outro prisma, para o mesmo autor português, as demais obrigações propter rem (em regra, obrigações de dare) “devem considerar-se, em princípio, não ambulatórias”, seja, entre outras razões que desautorizam a transmissão da dívida para o adquirente, porque a alienação do direito real não impossibilita a satisfação da prestação pelo alienante, seja, principalmente, em justificativa pertinente e oportuna para a situação sob exame, porque “se autonomizam no preciso momento em que se verificam ou concretizam os pressupostos de quem dependem. Trata-se de obrigações que, mal se constituem, imediatamente se separam ou desprendem da sua matriz, adquirindo total independência.”

João de Matos Antunes Varela, ao enfrentar a diferença prática entre os ônus reais e as obrigações reais, alinha-se com esta concepção doutrinária, esclarecendo: o titular da coisa, nestas, que adquirem autonomia com o seu vencimento, “fica vinculado às obrigações constituídas na vigência de seu direito”, enquanto, naqueles, “fica obrigado mesmo em relação às prestações anteriores, por suceder na titularidade de uma coisa a que está visceralmente unida a obrigação”, mas pelos débitos pretéritos, realça, sua obrigação é limitada ao valor da coisa.

Na mesma linha, Alberto Trabucchi . Não é outra, ademais, a posição de Fernando Noronha – para quem, “nas obrigações reais quem deve é ainda o titular da coisa, não é a própria coisa; por isso, cada pessoa será responsável apenas pelos débitos constituídos ao tempo em que tenha sido titular do direito real” -, da qual também não divergem Maria Helena Diniz e Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho.

De todo modo, não se ignoram autorizadas vozes destoantes da delimitação desenvolvida, que, porém, em sintonia, inclusive, com a construção jurisprudencial, acabam por identificar, especialmente quando o assunto versa sobre obrigação de pagamento de contribuições condominiais, ônus reais e obrigações propter rem, atribuindo a estas – de forma indiscriminada e, portanto, ainda que caracterizadas, in concreto, como obrigações de dare -, ambulatoriedade. A propósito, convém lembrar Orlando Gomes , Silvio Rodrigues e, mais recentemente, Luiz Edson Fachin.

Contudo, se a obrigação de pagar as contribuições condominiais – típica obrigação propter rem de dare que se autonomiza no momento em que se vence, desatando-se da relação jurídica de natureza real, sua matriz -, tivesse toda essa largueza, contemplando, por si e em particular, a responsabilidade pelo pagamento das contribuições condominiais constituídas antes da titularização de direitos sobre a unidade condominial, a positivação da regra insculpida no artigo 1.345 do Código Civil de 2002 seria prescindível: cuidar-se-ia de disposição legal inócua, à vista do artigo 1.336, I, do mesmo diploma legal.

Sob outra perspectiva, a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 não faria sentido, uma vez valorado o comando emergente do artigo 12 da Lei n.º 4.591/1964 , que, antes do Código Civil de 2002, já revelava a natureza propter rem da obrigação de pagamento das contribuições condominiais.

De fato, não seria razoável condicionar a alienação da unidade condominial e a transferência de direitos a ela relacionados à prévia comprovação da quitação das obrigações do alienante para com o condomínio, se a obrigação propter rem de dare, por sua natureza, abrangesse os débitos constituídos anteriormente à aquisição de direitos sobre a coisa.

Ora, se o novo titular de direitos sobre a unidade condominial respondesse, a par dos débitos atuais, também pelos passados, estes também exigíveis do alienante, qual seria, então, a lógica razoável do condicionamento, ainda mais à vista da garantia representada pelo imóvel, passível de penhora em futura execução? Na realidade, nenhuma.

Ademais, a atual redação do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, dada pela Lei n.º 7.182/1984, veio substituir a sua versão original, reproduzida, porém, pelo texto do artigo 1.345 do novo Código Civil, ressalvada a referência, agora feita, aos juros moratórios.

Quer dizer: as modificações legislativas reforçam, em primeiro lugar, a intransmissibilidade da obrigação propter rem de dare e, por fim, porque incompatível com a regra do artigo 1.345 do Código Civil, a revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964.

Com efeito, o restabelecimento, pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002 – com o acréscimo relativo aos juros moratórios -, do texto original do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, antes suprimido pela sua redação atual, oriunda da Lei n.º 7.182/1984, é sintomático da revogação assinalada.

Enfim, as características da obrigação propter rem de dare, especialmente no tocante à amplitude da responsabilidade do titular de direitos sobre a coisa pelos débitos a ela atrelados – extraídos da melhor doutrina a respeito do tema e da interpretação sistemática, primeiro, do artigo 12 com o parágrafo único do artigo 4.º (em suas duas versões), ambos da Lei n.º 4.591/1964, e, depois, do artigo 1.336, I, com o artigo 1.345, do Código Civil de 2002 -, e a evolução histórica das modificações legislativas confortam a revogação afirmada.

A ratio do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, direcionada à tutela da saúde financeira e do equilíbrio econômico do condomínio, fica esvaziada, diante da norma retirada do texto do artigo 1.345 do Código Civil de 2002, igualmente voltada, em substituição à norma anterior, à proteção, sob nova e mais consistente capa, da propriedade comum. Tal regra, é certo, perdeu a sua instrumentalidade, não podendo subsistir – não apenas em razão da revogação tácita aludida -, mas também porque, sem finalidade que a justifique razoavelmente, entrava o tráfego econômico, a circulação dos bens imóveis e a correspondência entre a realidade registrária e a factual.

Nessa toada, Marco Aurelio S. Viana, ao comentar o artigo 1.345 do Código Civil, ponderou: “a solução legal é mais adequada do que a que estava presente no parágrafo único do art. 4º da Lei nº 4.591/64. O condomínio tem seus interesses tutelados de forma mais efetiva, porque pode cobrar do adquirente dívida que o alienante tiver para com ele.”

Por sua vez, Francisco Loureiro, tal como Arnaldo Rizzardo, é taxativo: à luz do artigo 1.345 do Código Civil, “está revogada a regra do art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 4.591/64. Se a própria lei explicita que o adquirente responde pelos débitos anteriores, perde o sentido a prova da quitação de débito existente no momento da alienação.”

Em suma: revogada a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, a prévia comprovação de quitação dos débitos condominiais não é mais condição para transferência de direitos relativos à unidade condominial.

Pelo exposto, nego provimento ao recurso, de modo a confirmar a respeitável sentença que deu por prejudicada a dúvida.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.J.E. de 14.06.2012)