Ganho de capital decorrente da transmissão da herança é isento de IR até 31.12.1997.

EMENTA

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. TRANSFERÊNCIA DE BENS E DIREITOS POR SUCESSÃO HEREDITÁRIA. LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA. APLICAÇÃO RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE. 1. O fato gerador do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade jurídica de acréscimo patrimonial de qualquer natureza, de sorte que o eventual ganho de capital relacionado à herança sujeita-se às normas em vigor quando da transmissão dos bens, em razão da irretroatividade da norma tributária e do princípio do tempus regit actum. 2. Conforme o princípio da saisine, o falecimento do de cujus coincide temporalmente com a transmissão da herança. 3. Levando-se em consideração que nesse momento os valores adquiridos por herança gozavam de isenção do imposto de renda, sendo as transferências causa mortis excluídas do cálculo de ganho de capital – arts. 6º, XVI, e 22, III, da Lei nº 7.713⁄88 –, não pairam dúvidas de que não há a incidência da superveniente Lei nº 9.532⁄97. Precedente da Primeira Turma: REsp nº 805.806⁄RJ, Rel. Min. Denise Arruda, DJU 18.02.08. 4. Recurso especial não provido. (STJ – REsp nº 829.932 – RS – 2ª Turma – Rel. Min. Castro Meira – DJ 23.04.2012)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques e Cesar Asfor Rocha votaram com o Sr. Ministro Relator. Sustentou oralmente o Dr. Marcelo Gatto Spinardi (Mandato legal), pela parte RECORRENTE: FAZENDA NACIONAL

Brasília (DF), 10 de abril de 2012 (data do julgamento).

MINISTRO CASTRO MEIRA – Relator.

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO MEIRA (Relator):

O recurso especial foi interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assim ementado:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA SOBRE GANHO DE CAPITAL EM BENS ADQUIRIDOS POR HERANÇA. LEI Nº 9.532⁄97. IRRETROATIVIDADE. APLICAÇÃO DA LEI VIGENTE À DATA DO ÓBITO (LEI Nº 7.713⁄88). LEGISLAÇÃO POSTERIOR. MODIFICAÇÃO DE TRATAMENTO. INAPLICABILIDADE. É de ser mantida a sentença que consagrou a Lei nº 7.713⁄88 como aplicável ao caso, pois vigente à data da abertura da sucessão (óbito), afastando as novas disposições trazidas pela Lei nº 9.532⁄97, em em especial a previsão do art. 8º, § 1º, da Instrução Normativa nº 53. Ao tempo da abertura da sucessão, a lei vigente (Lei nº 7.713⁄88) não trazia qualquer menção a ‘valor do bem constante na última declaração de Imposto de Renda’, tratando somente do valor do bem adquirido por herança ou transmitindo causa mortis, que será entendido como valor real do bem, quer corresponda ao da última declaração de imposto de renda do de cujus ou não (fl. 118).

Com amparo em pretensa violação do art. 23, §§ 1º e 2º, da Lei nº 9.532⁄97, a ora recorrente sustenta que “não se trata de incidência de tributo causa mortis, hipótese em que válida a legislação vigente na ocasião do passamento do de cujus, mas sim ganho de capital pela discrepância entre o valor constante da declaração de rendimentos do próprio espólio e o valor de mercado”.

Nesse passo, conclui que, “tendo optado o contribuinte em atribuir aos bens o valor de mercado como custo de aquisição, incide o IR por ganho de capital, conforme estabelecido no § 1º do art. 23 da Lei 9.532⁄97, vigente à época da transferência do direito de propriedade” (fl. 125).

Foram ofertadas contrarrazões às fls. 129-134.

Admitido o apelo nobre, subiram os autos a esta Corte.

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO MEIRA (Relator):

Atendidos os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso especial, passando a examinar o mérito da controvérsia.

O ESPÓLIO DE CARMEN SOLANGE HABEYCHE RUSCHEL impetrou mandado de segurança preventivo com o escopo de obstar a atuação da autoridade administrativa quanto à promoção de cobrança de imposto de renda sobre o ganho de capital com lastro no art. 23 da Lei nº 9.532⁄97, haja vista que a nova legislação somente seria aplicável aos inventários abertos a partir de 01.01.98.

Ao confirmar a sentença que concedera a segurança, a Corte de origem assim se manifestou:

Pela sentença recorrida restou determinado à autoridade impetrada que se abstivesse de adotar qualquer medida de ofício tendente à cobrança do imposto de renda sobre o ganho de capital, na forma do art. 23 da Lei nº 9.532⁄97, ao receber a declaração de ajuste anual do imposto de renda de pessoa física de encerramento do espólio do impetrante.

A União, em seu apelo, remete aos argumentos expendidos pela autoridade impetrada.

O entendimento esposado pelo julgador monocrático consagrou a Lei nº 7.713⁄88 como aplicável ao caso, pois vigente à data da abertura da sucessão, afastando as novas disposições, trazidas pela Lei nº 9.532⁄97, e em especial a previsão do art. 8º, § 1º, da Instrução Normativa nº 53.

A solução aplicada pela sentença merece ser mantida, posto espelhar orientação seguida nos Tribunais pátrios, em casos semelhantes. Veja-se o que decide o Superior Tribunal de Justiça acerca do momento da ocorrência do fato gerador, ainda que em relação a imposto diverso:

‘TRIBUTÁRIO. IMPOSTO CAUSA MORTIS. FATO GERADOR. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 106 E 111 DO CTN. LEI ESTADUAL Nº 10.750⁄00. SÚMULA 112⁄STF. 1. O fato gerador do imposto causa mortis dá-se com a transmissão da propriedade ou de quaisquer bens e direitos e ocorre no momento do óbito. Aplicação da lei vigente à época da sucessão. 2. Afasta-se a aplicação do artigo 106 do CTN, em razão de que o imposto cobrado não se enquadra em qualquer de suas hipóteses. 3. Em se tratando de legislação que exonera o contribuinte de imposto, há que ser aplicado o artigo 111, inciso II, do CTN, que determina que se deve interpretar literalmente a legislação tributária que disponha de outorga de isenção. 4. Recurso especial provido.’ (2ª T., REsp 679.463⁄SP, Rel. Min. Castro Meira, DJ 21.03.2005, p. 343 – grifei)

‘TRIBUTÁRIO – IMPOSTO DE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS – LEI 10.705⁄00 – ISENÇÃO – RETROATIVIDADE – IMPOSSIBILIDADE. 1. A regra basilar em tema de direito intertemporal é expressa na máxima tempus regit actum. Assim, o fato gerador, com os seus consectários, rege-se pela lei vigente à época de sua ocorrência. 2. O Imposto de Transmissão tem como fato gerador, in casu, a transmissão causa mortis da propriedade, que no direito brasileiro coincide com a morte, por força do direito de sucessão. 3. Ocorrido o fato gerador do tributo anteriormente à vigência da lei que veicula isenção, inviável a aplicação retroativa, porquanto, in casu, não se trata de norma de caráter interpretativo ou obrigação gerada por infração (art. 106 do CTN). 4. Tratando-se de norma concessiva de exoneração tributária, sua interpretação é restritiva (art. 111, III do CTN), observada a necessária segurança jurídica que opera pro et contra o Estado. Inteligência do art. 106 do CTN. 3. Recurso provido.’ (1ª T., REsp 464.419⁄SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 02.06.2003, p. 193 – grifo nosso)

‘TRIBUTÁRIO – INCIDÊNCIA DO ITBI – PARTILHA DOS BENS IMÓVEIS EM FAVOR DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE – ARTIGO 1572, CÓDIGO CIVIL – LEI ESTADUAL N. 6763⁄75. 1. PELA ABERTURA DA SUCESSÃO, OCORRENDO A TRANSMISSÃO DO DOMÍNIO E POSSE DOS BENS DO DE CUJUS AOS HERDEIROS LEGÍTIMOS OU TESTAMENTÁRIOS, DESDE LOGO, COM O ÓBITO E NO DIA DESTE, DEFINE-SE O FATO GERADOR DO IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DOS BENS IMÓVEIS – ITBI – (ART. 1572, CÓDIGO CIVIL). 2. A OBRIGAÇÃO TRIBUTARIA, EXISTENTE DESDE A DATA DO ÓBITO, SOMENTE É EXIGÍVEL O SEU CUMPRIMENTO APÓS A HOMOLOGAÇÃO DO CALCULO POR SENTENÇA JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO. 3. A PARTILHA NÃO SOFRE ÓBICES FISCAIS, INCLUSIVE QUANTO A DESTINAÇÃO INTEGRAL DOS BENS IMÓVEIS, SOMANDO-SE A MEAÇÃO DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE, POREM, NÃO MODIFICA A DATA DO FATO GERADOR DA INCIDÊNCIA TRIBUTARIA, OCORRIDO NA DATA DO ÓBITO. 4. RECURSO IMPROVIDO.” (1ª T., REsp 5.118⁄MG, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJ 20.02.1995, p. 3150 – grifei)

E ainda:

‘PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO CONTRA DECISÃO DENEGATÓRIA DE LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. IMPOSTO DE RENDA. BENS RECEBIDOS POR HERANÇA. DIFERENÇA ENTRE OS VALORES LANÇADOS NA ÚLTIMA DECLARAÇÃO DO DE CUJOS E OS DE MERCADO. AUSÊNCIA DE GANHO DE CAPITAL. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 7º, II, DA LEI 1.533⁄1951. 1 – Os agravantes encontram-se sujeitos à iminência de dano irreparável. Do ato impugnado poderá resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida, no julgamento do mérito, pois já estarão sujeitos ao lançamento do tributo. 2 – Em princípio, inexiste ganho efetivo de capital quando há diferença entre os valores constantes da última declaração do de cujus e aqueles de mercado, vez que ainda não alienados. 3 – Presentes os pressupostos autorizadores da liminar. 4 – Agravo provido.’ (TRF 1ª R., 4ª T., AG nº 200101000273170⁄MG, rel. Des. Fed. Hilton Queiroz, DJ 21.2.2002, p. 80)

‘TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. DIREITO INTERTEMPORAL. DIREITO DE SAISINE. ÓBITO. APLICAÇÃO DA LEI VIGENTE. LEI 7.713⁄88. BENS ADQUIRIDOS POR HERANÇA. ISENTOS DE IMPOSTO DE RENDA. TRANSFERÊNCIAS CAUSA MORTIS. EXCLUSÃO DO GANHO DE CAPITAL DOS HERDEIROS E LEGATÁRIOS. LEGISLAÇÃO POSTERIOR. MODIFICAÇÃO DE TRATAMENTO. INAPLICABILIDADE. 1. A solução da controvérsia trazida à colação está em fixar o momento da transmissão da herança e, partindo deste, em aplicar o princípio da irretroatividade da lei tributária. 2. O artigo 1.572 do antigo Código Civil, em vigor ao tempo do falecimento do autor da herança, transmitiam-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, no que encontra correspondência no artigo 1.784 do novo Código Civil. 3. Adotou-se o princípio originário do droit de saisine, que dá à sentença de partilha caráter meramente declaratório, haja vista que a transmissão dos bens aos herdeiros e legatários se dá no momento do óbito do transmitente. 4. As regras a serem observadas na transmissão da herança serão aquelas em vigor ao tempo do óbito do de cujus que, no caso em tela, e no que tange à incidência do Imposto de Renda, encontravam-se na Lei 7.713⁄88. 5. Dispunha o citado diploma legal, no inciso XIV, do artigo 8º, e no inciso III, do artigo 22, que o valor dos bens adquiridos por herança serão isentos do imposto de renda e que as transferências causa mortis serão excluídas do ganho de capital dos herdeiros e legatários. 6. A tese defendida pela recorrida, de que o fato gerador do imposto na espécie, a ensejar o recolhimento do imposto, é o acréscimo patrimonial decorrente da reavaliação patrimonial dos bens constantes da última declaração do de cujus, há de ser refutada, haja vista que faz incidir ao caso em comento sistemática criada por lei posterior à transmissão dos bens deixados pelo transmitente, que se deu sob a égide da Lei 7.713⁄1998, com conseqüente violação do princípio da irretroatividade das leis tributárias. 7. Por unanimidade, deu-se provimento à apelação em Mandado de segurança.’ (TRF 2ª R., 5ª T., AMS nº 50702⁄RJ, rel. Des Fed. Alberto Nogueira, DJ 29.06.2004, p. 129)

Destaco o voto condutor deste julgado:

‘A solução da controvérsia trazida à colação está em fixar o momento da transmissão da herança e, partindo deste, em aplicar o princípio da irretroatividade da lei tributária.

O artigo 1.572 do antigo Código Civil, em vigor ao tempo do falecimento do autor da herança, preceituava que, aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitiam-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, no que encontra correspondência no artigo 1.784 do novo Código Civil. Adotou-se o princípio originário do droit de saisine, que dá à sentença de partilha caráter meramente declaratório, haja vista que a transmissão dos bens aos herdeiros e legatários se dá no momento do óbito do transmitente.

Pelo acima exposto, há de se concluir que as regras a serem observadas na transmissão da herança serão aquelas em vigor ao tempo do óbito do de cujus que, no caso em tela, e no que tange à incidência do Imposto de Renda, encontravam-se na Lei nº 7.713, de 18.12.1988. Dispunha o citado diploma legal, no inciso XVI, do artigo 8º, e no inciso III, do artigo 22, que o valor dos bens adquiridos por herança serão isentos do imposto de renda e que as transferências causa mortis serão excluídas do ganho de capital dos herdeiros e legatários.

Não cabe ao intérprete criar restrições onde o legislador não as estipulou. Ao tempo da abertura da sucessão, não havia qualquer previsão de restrição à isenção supramencionada, pelo que deve esta incidir plenamente. Não há qualquer menção à “valor do bem constante na última declaração de Imposto de Renda”, mas valor do bem adquirido por herança ou transmitido causa mortis, que será entendido como valor real do bem, quer corresponda ao da última declaração de imposto de renda do de cujus ou não, sobre o qual deverá incidir a isenção. A legislação posterior (Lei nº 9.532⁄97) modificou o tratamento dispensado a matéria e previu a incidência de Imposto de Renda sobre a diferença a maior entre o valor de mercado e o valor em que constavam da declaração de bens do de cujus.

A tese defendida pela recorrida, de que o fato gerador do imposto na espécie, a ensejar o recolhimento do imposto, é o acréscimo patrimonial decorrente da reavaliação patrimonial dos bens constantes da última declaração do de cujus, há de ser refutada, haja vista que faz incidir ao caso em comento a sistemática criada por lei posterior à transmissão dos bens deixados por Mário Henrique Simonsen, o transmitente, que se deu sob a égide da Lei 7.713, de 28⁄12⁄1998. Defender o contrário implica em violar o preceito contido no princípio da irretroatividade das leis tributárias.’

Ante o exposto, com base nos fundamentos expostos, mantenho a sentença, negando provimento à apelação e à remessa oficial.

É o voto (fls. 112-116).

Com amparo em pretensa violação do art. 23, §§ 1º e 2º, da Lei nº 9.532⁄97, a ora recorrente sustenta que “não se trata de incidência de tributo causa mortis, hipótese em que válida a legislação vigente na ocasião do passamento do de cujus, mas sim ganho de capital pela discrepância entre o valor constante da declaração de rendimentos do próprio espólio e o valor de mercado”.

Nesse passo, conclui que, “tendo optado o contribuinte em atribuir aos bens o valor de mercado como custo de aquisição, incide o IR por ganho de capital, conforme estabelecido no § 1º do art. 23 da Lei 9.532⁄97, vigente à época da transferência do direito de propriedade” (fl. 125).

A pretensão recursal não merece acolhida.

O dispositivo legal invocado assim estabelece:

Art. 23. Na transferência de direito de propriedade por sucessão, nos casos de herança, legado ou por doação em adiantamento da legítima, os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.

§ 1º Se a transferência for efetuada a valor de mercado, a diferença a maior entre esse e o valor pelo qual constavam da declaração de bens do de cujus ou do doador sujeitar-se-á à incidência de imposto de renda à alíquota de quinze por cento.

Como se observa, o acórdão questionado considerou descabida a incidência do imposto de renda nos moldes do § 1º – isto é, cobrando-se a exação sobre a diferença entre o valor da declaração do falecido e o valor de mercado – sob a justificativa de que a transferência do direito de propriedade deu-se com o óbito e a legislação em tela é posterior, não podendo retroagir.

A seu turno, a ora recorrente argumenta que “o momento em que se afere o valor dos bens é o momento de sua avaliação, no processo de inventário”, de sorte que “não pode ser o momento da abertura da sucessão, porque naquela data não havia, ainda, definição dos bens que seriam reservados a cada herdeiro, tampouco havia avaliação dos bens, que apenas se aperfeiçoa no curso do inventário, na ocasião de sua homologação” (e-STJ fl. 122).

Nesse contexto, em obséquio aos princípios do droit de saisine e da irretroatividade da lei tributária, mostra-se absolutamente inadmissível a aplicação de norma cujo advento deu-se posteriormente à transmissão da herança em razão do falecimento, evento ocorrido sob a égide dos arts. 6º, XVI, e 22, III, da Lei nº 7.713⁄88, verbis:

Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguinte rendimentos percebidos por pessoas físicas:

(…)

XVI – o valor dos bens adquiridos por doação ou herança;

Art. 22. Na determinação do ganho de capital serão excluídos:

(…)

III – as transferências causa mortis e as doações em adiantamento da legítima;

Como é cediço, o fato gerador do imposto em tela é o acréscimo patrimonial derivado da aquisição da disponibilidade jurídica de renda de qualquer natureza, de sorte que o eventual ganho de capital relacionado à herança sujeita-se às normas em vigor quando da transmissão dos bens (= falecimento do de cujus), as quais, no caso vertente, excluíam essas parcelas da hipótese de incidência da exação.

Com efeito, na sucessão causa mortis deve-se observar o princípio da saisine, segundo o qual a transferência integral dos bens do de cujus para seus herdeiros opera-se no exato momento da morte, como preconiza o art. 1.784 do Código Civil: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.

Nesse raciocínio, leciona Carlos Roberto Gonçalves que “embora não se confundam a morte com a transmissão da herança, sendo aquela pressuposto e causa desta, a lei, por ficção, torna-as coincidentes em termos cronológicos, presumindo que o próprio de cujus investiu seus herdeiros no domínio e na posse indireta de seu patrimônio, porque este não pode restar acéfalo” (Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 6ª ed., 2012, p. 38).

Assim, sabendo-se que o passamento do de cujus coincide temporalmente com a transmissão da herança e levando-se em consideração que nesse momento os valores adquiridos por herança eram isentos do imposto de renda e as transferências causa mortis eram excluídas do cálculo de ganho de capital, não pairam dúvidas de que o aresto impugnado acertou ao prestigiar o princípio tempus regit actum.

Como bem destacou o Tribunal a quo, a irretroatividade impede que se submeta o caso vertente à superveniente disposição legal que tributa a transmissão hereditária em que a transferência é promovida de acordo com o valor de mercado dos bens, pois, com o perdão da redundância, à época do óbito não existia tal discriminação.

Ademais, não custa lembrar que a conclusão do inventário – seguida da expedição do formal de partilha – limita-se a declarar formalmente uma transferência já realizada quando da morte do de cujus, o que reforça o entendimento de que não é viável a adoção de sistemática tributária criada após a transmissão dos bens aos herdeiros, sob pena de fragilizar-se a garantia constitucional da irretroatividade tributária.

Em situação assemelhada, decidiu a Primeira Turma:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. GANHO DE CAPITAL DECORRENTE DA TRANSFERÊNCIA DE BENS E DIREITOS POR SUCESSÃO HEREDITÁRIA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO RETROATIVA DO ART. 23 DA LEI 9.532⁄97. 1. O art. 81, II, da Lei 9.532⁄97, fixou o início da vigência do art. 23 da mesma lei a partir de 1º de janeiro de 1998. O Tribunal de origem, em face do que dispõe o art. 1.572 do Código Civil de 1916, decidiu pela inaplicabilidade, ao presente caso, da Lei 9.532⁄97, que foi editada em data posterior à abertura da sucessão, conforme entendimento assim ementado: “1. A solução da controvérsia trazida à colação está em fixar o momento da transmissão da herança e, partindo deste, em aplicar o princípio da irretroatividade da lei tributária. 2. O artigo 1.572 do antigo Código Civil, em vigor ao tempo do falecimento do autor da herança, transmitiam-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, no que encontra correspondência no artigo 1.784 do novo Código Civil. 3. Adotou-se o princípio originário do droit de saisine, que dá à sentença de partilha caráter meramente declaratório, haja vista que a transmissão dos bens aos herdeiros e legatários se dá no momento do óbito do transmitente. 4. As regras a serem observadas na transmissão da herança serão aquelas em vigor ao tempo do óbito do de cujus que, no caso em tela, e no que tange à incidência do Imposto de Renda, encontravam-se na Lei 7.713⁄88. 5. Dispunha o citado diploma legal, no inciso XIV, do artigo 6º, e no inciso III, do artigo 22, que o valor dos bens adquiridos por herança serão isentos do imposto de renda e que as transferências causa mortis serão excluídas do ganho de capital dos herdeiros e legatários. 6. A tese defendida pela recorrida, de que o fato gerador do imposto na espécie, a ensejar o recolhimento do imposto, é o acréscimo patrimonial decorrente da reavaliação patrimonial dos bens constantes da última declaração do de cujus, há de ser refutada, haja vista que faz incidir ao caso em comento sistemática criada por lei posterior à transmissão dos bens deixados pelo transmitente, que se deu sob a égide da Lei 7.713⁄1988, com conseqüente violação do princípio da irretroatividade das leis tributárias.” 2. Em assim decidindo, a Turma Regional não contrariou o art. 23 da Lei 9.532⁄97; ao contrário, deu-lhe interpretação consentânea com a lei civil, observando, ainda, o disposto nos arts. 104, 105 e 116 do Código Tributário Nacional. 3. Recurso especial desprovido (REsp 805.806⁄RJ, Rel. Min. Denise Arruda, DJU 18.02.08).

Naquela ocasião, em voto-vista que sintetiza a tese então consagrada e aqui reiterada, assim se manifestou o ilustre Sr. Ministro Luiz Fux:

Com relação ao voto da Sra. Ministra Denise Arruda, anotei seus fundamentos e realmente estão de acordo com o que diz o ordenamento do Estatuto do Contribuinte, que, dentre os seus direitos fundamentais, está exatamente a irretroatividade da lei tributária. E, ainda que assim não bastasse, essa aplicação do princípio do tempus regit actum que S. Exa aplica em seu voto está em consonância com os conceitos de Direito Privado e até com o conceito de renda do Código Tributário Nacional, que considera renda quando esta já está disponível. E tanto o direito à sucessão aberta é renda e considerado bem imóvel pelo Código Civil que pode ser imediatamente cedido esse direito hereditário, por isso que já adquirido.

De sorte que sigo integralmente o voto de S. Exa., que dá ao Direito de Sesine a verdadeira conotação que tem, que é o de transmitir imediatamente a posse e a propriedade dos bens aos herdeiros do de cujus.

Por derradeiro, peço licença para reproduzir fragmento do artigo doutrinário “O Imposto de Renda Incidente sobre Heranças e Legados e a IN-SRF nº 53⁄98”, da lavra de Gisele Lemke e que também foi invocado pela Primeira Turma quando do julgamento do referido apelo:

“A Secretaria da Receita Federal, através da Instrução Normativa nº 53⁄98, dispôs sobre as declarações de rendimentos de espólio e sobre a tributação dos ganhos de capital decorrentes de transmissão causa mortis, estabelecida pela Lei nº 9.532⁄97, artigo 23. Acerca desta última disposição legal, escrevemos um artigo doutrinário, em que sustentamos a posição de que tal tributação é constitucional. Todavia, um dos dispositivos da Instrução Normativa antes referida, que deveria somente regulamentar a norma do artigo 23 da Lei nº 9.532⁄97, chamou-nos a atenção, por procurar aplicar retroativamente aquela disposição. Referimo-nos ao artigo 8° e seu parágrafo 1º, da IN-SRF n° 53⁄98, do seguinte teor:

‘Art. 8° A transferência dos bens e direitos aos herdeiros, meeiro ou legatários pode ser efetuada pelo valor constante da última declaração de bens e direitos apresentada pelo de cujus ou pelo valor de mercado.

§ 1º Se a transferência for efetuada por valor superior ao constante da última declaração do de cujus, a diferença ficará sujeita à incidência do imposto de renda à alíquota de quinze por cento, observado o disposto no art. 17 da Instrução Normativa SRF n° 048, de 1998, inclusive nos casos de espólio iniciados antes de 1°de janeiro de 1998.’ (grifamos)

Ou seja, apesar de a Lei n° 9.532 haver sido publicada em dezembro de 1997, a Instrução Normativa pretende fazê-la incidir também sobre as transmissões causa mortis anteriores a 1° de janeiro de 1998.

Em que pese entendermos constitucional o disposto no artigo 23 da Lei n° 9.532⁄97, que instituiu a tributação pelo IR sobre a mais-valia decorrente das heranças, legados e doações em adiantamento da legítima, não podemos aceitar a retroatividade em questão. Nem mesmo se a lei o houvesse determinado, isso seria admissível. Com muito mais razão, não pode uma instrução normativa pretender aplicar a lei retroativamente, senão vejamos.

O artigo 150, inciso III, da Constituição Federal, traz duas garantias fundamentais do contribuinte, conhecidas como princípio da irretroatividade e princípio da anterioridade da lei tributária. Estes, os dispositivos constitucionais que parecem ter sido infringidos pela disposição ora analisada (art. 8º e § 1º, IN 53⁄98).

Cuidaremos, na seqüência, apenas do princípio da irretroatividade, por nos parecer suficiente a sua análise, para a demonstração de nossa posição.

O princípio da irretroatividade tributária, nos termos da Lei Maior (art. 150, III, a), impede a cobrança de tributos ‘em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado’. É preciso saber, então, quando aconteceu o ‘fato gerador’ do IR sobre mais-valias decorrentes das heranças e legados, cujo inventário, embora iniciado anteriormente, não tenha sido encerrado até 31.12.97, subsistindo, portanto, a figura do espólio, em 1º.01.98.

Pois bem, o ‘fato gerador’ do tributo em exame é a mais-valia decorrente da herança ou legado. Ora, tal mais-valia ingressa no patrimônio do herdeiro ou legatário no momento do falecimento do de cujus, nos termos do artigo 1.572 do Código Civil, segundo o qual ‘aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários’ (grifamos). Parece evidente, pois, que a mais-valia decorrente da transmissão causa mortis só pode se verificar nesse momento. Por conseguinte, o ‘fato gerador’ do imposto em tela acontece no momento da abertura da sucessão, que é o momento do falecimento do de cujus. Assim, só podem incidir sobre os bens transmitidos por herança ou legado os tributos já previstos (já instituídos por lei) na ocasião do falecimento do de cujus. Qualquer tributo que venha a ser instituído posteriormente não pode incidir sobre tais ‘fatos geradores’, ainda que o inventário não tenha sido concluído. Isso pela simples razão de que pouco importa a data da conclusão do inventário e de expedição do formal de partilha, porquanto tal documento apenas formaliza (declara) uma transferência já ocorrida, cabendo lembrar que o espólio sequer se qualifica como pessoa jurídica. E, portanto, não poderia mesmo ser titular de direito de propriedade.

Nem se diga que, no art. 8º, § 1º, da IN-SRF nº 53⁄98, se está a regular tão-somente o valor pelo qual o bem pode ser avaliado, para efeito de transferência, criando-se uma opção para o contribuinte. Ou que não se trata de tributação retroativa, porque o tributo incide, na verdade, sobre a transferência futura, a ser feita pelo herdeiro ou legatário, havendo simplesmente uma possibilidade de antecipação da tributação, no caso de o contribuinte o preferir. Pensamos, efetivamente, que se pode sustentar ser este último o sistema da Lei nº 9.532⁄97. Mas isso não autoriza a Receita Federal a aplicá-lo retroativamente. E o fato é que, na ocasião da transferência da propriedade que deu origem à mais-valia ora examinada, havia expressa isenção de IR sobre tal operação. Com efeito, o artigo 16, inciso III, da Lei 7.713⁄88, estabelecia textualmente que o custo de aquisição do bem será o valor da avaliação no inventário ou arrolamento. E o artigo 22, inciso III, da mesma lei, dispunha que serão excluídas as transferências causa mortis e as doações em adiantamento da legítima na determinação do ganho de capital.

Dir-se-á que houve, através do dispositivo em questão (art. 8º, § 1º, IN 53-98), mera alteração do valor de avaliação do bem no inventário, disposição esta que não trata de instituição de tributo e, por conseqüência, não tem qualquer relação com a disposição do art. 150, inciso III, letras ‘a’ e ‘b’, da Constituição.

Se assim se entendesse, efetivamente não se poderia dizer que tivesse sido ofendido o princípio da irretroatividade, já que as novas regras para determinação do valor do bem serão aplicadas a partir de 1º.01.98 (i.e., a partir da publicação da Lei nº 9.532⁄97) e somente nos casos em que ainda não foi terminado o inventário, o que vale dizer, nos casos em que não houve ainda a fixação do valor de transferência dos bens.

Esse raciocínio, contudo, não pode ser aceito. A fixação do valor pelo qual o bem ingressa no patrimônio do contribuinte é dado que pertine à formação da base de cálculo do IR. Como dissemos no estudo anteriormente indicado, ‘se o valor pelo qual os bens entram no patrimônio das pessoas é essencial para o cálculo do acréscimo patrimonial no período considerado e, portanto, para o cálculo do IR devido, afigura-se evidente que o contribuinte não pode escolher o valor pelo qual receberá o bem’. E, acrescentamos agora, do mesmo modo, não pode o Fisco escolher tal valor. Muito menos poderá fazê-lo de forma retroativa. Em síntese, se a lei da época da transmissão causa mortis do bem possibilitava que tal se desse a valor de mercado, isentando de tributação, expressamente (art. 22, III, L 7.713⁄88), o ganho de capital daí decorrente, lei posterior não pode revogar tal possibilidade, porquanto estaria criando um tributo inexistente na época, através da alteração de um dos dados de sua base de cálculo.

Em outras palavras, na época da abertura do inventário (falecimento do de cujus) deu-se a transmissão da herança ou legado pelo valor da avaliação no inventário, pouco importando se se discute até hoje qual seja esse valor, pois tal discussão tem por objetivo a mera declaração do valor de mercado dos bens transmitidos.

Mas a questão pode ser vista, ainda, sob outro ângulo. A Lei nº 9.532⁄97 alterou o sistema até então existente, em que se permitia a reavaliação do bem por valor de mercado, por ocasião da sua transmissão causa mortis, isentando-se de IR o ganho de capital daí decorrente. Pode-se dizer, pois, que indigitada lei revogou a isenção então existente, o que equivale, consoante orientação majoritária da doutrina tributária, à instituição de novo tributo, operação esta que está sujeita ao princípio da irretroatividade tributária. E a incidência de tal princípio não pode ser elidida mediante subterfúgios, como o de se dizer que se está simplesmente a alterar a regra anteriormente existente acerca do valor da avaliação dos bens no inventário.

Concluindo, parece-nos que a Receita Federal exorbitou de sua competência, ao estabelecer, na Instrução Normativa referida, que a tributação pelo IR sobre heranças e legados incide sobre os ‘espólios’ iniciados antes de 1º de janeiro de 1998.” (Revista Dialética de Direito Tributário nº 40, janeiro de 1999, pp. 49-52)

Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.

É como voto.

MINISTRO CASTRO MEIRA – Relator.