STJ: Direito civil – Negócios jurídicos – Invalidades – Cessão de uso de título de operador especial da bolsa de valores – Constituição de mandato com cláusula “em causa própria” como forma de garantia – Alienação do título pelo cessionário⁄mandante a terceiro de boa-fé.

EMENTA

DIREITO CIVIL. NEGÓCIOS JURÍDICOS. INVALIDADES. CESSÃO DE USO DE TÍTULO DE OPERADOR ESPECIAL DA BOLSA DE VALORES. CONSTITUIÇÃO DE MANDATO COM CLÁUSULA “EM CAUSA PRÓPRIA” COMO FORMA DE GARANTIA. ALIENAÇÃO DO TÍTULO PELO CESSIONÁRIO⁄MANDANTE A TERCEIRO DE BOA-FÉ. 1.- O beneficiário de mandato com cláusula “em causa própria”, tem garantido, ante quem lhe outorgou esse mandato, o direito subjetivo de transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do contrato, desde que obedecidas as formalidades legais. 3.- Em face de terceiros, porém, a estipulação só é válida mediante o competente registro em cartório. 4.- Assim, o mandatário não pode pretender a invalidação da alienação posteriormente efetuada pelo mandante, que figurava como regular proprietário do bem, a terceiro de boa-fé. 5.- Resolve-se, pois, a obrigação em perdas e danos, os quais, na hipótese, foram, mesmo, contratual e previamente estipuladas. 6.- Recurso Especial a que se nega provimento. (STJ – REsp nº 1.269.572 – SP – 3ª Turma – Rel. Min. Sidnei Beneti – DJ 09.05.2012)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 17 de abril de 2012 (data do julgamento).

MINISTRO SIDNEI BENETI – Relator.

RELATÓRIO

O EXMO SR. MINISTRO SIDNEI BENETI (Relator):

1.- SÉRGIO CIMATTI interpõe recurso especial com fundamento na alínea “a” do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator o Desembargador DONEGÁ MORANDINI, cuja ementa ora se transcreve (fls. 848):

Ação declaratória de invalidade⁄ineficácia de cessão de direitos sobre título patrimonial de operador especial da BM&F. Cerceamento de defesa. Suficiência da prova documental existente nos autos para o equacionamento da demanda. Aplicação do disposto no artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil. Cessão de direitos firmada entre o réu Antônio Manuel e a BM&F. Pretensão de invalidade⁄ineficácia afastada. Cessionária (BM&F) reconhecida como terceiro de boa-fé. Título patrimonial em nome do cedente, sem qualquer indicativo, perante a BM&F, de óbice quanto à cessão. BM&F que desconhecia o negócio anterior firmado entre o autor e o réu Antônio Manuel, bem como a procuração em causa própria de fls. 14. Normalidade, ademais, que envolveu a cessão de fls. 20⁄21, a ratificar a boa-fé da cessionária BM&F. Validade da cessão de fls. 20⁄21, restando ao autor, em princípio, a indenização pactuada na cessão de fls. 10⁄13 pela perda do título. Improcedência da demanda preservada. Apelo da sociedade de Advogados que representou processualmente o réu Antônio Manuel. Conhecimento do recurso. Legitimidade do advogado para interpor recurso visando à elevação da verba honorária. Aplicação do disposto no artigo 23 da Lei n. 8.906⁄94. Improcedente a ação, a verba honorária deve ser arbitrada com fundamento no artigo 20, parágrafo 4º, do CPC. Insuficiência, todavia, do valor arbitrado (R$-1.000,00). Elevação para R$-2.500,00, à vista da natureza e importância da causa, APELO do AUTOR DESPROVIDO, com CONHECIMENTO e PROVIMENTO PARCIAL do RECURSO INTERPOSTO PELA SOCIEDADE DE ADVOGADOS.

2.- Os embargos de declaração interpostos (fls. 859⁄861) foram parcialmente acolhidos, apenas para correção de erro material quanto ao número do artigo do Código de Processo Civil indicado no acórdão embargado como fundamento do aresto (fls. 871⁄874).

3.- O Recorrente alega que o julgamento antecipado da lide, com supressão da fase instrutória, representou, no caso concreto, ofensa aos artigos 131 e 330, I, do Código de Processo Civil. Sustenta que, a prova oral que pretendia realizar seria apta a comprovar que a Primeira Recorrida, BM&F, não é terceira de boa-fé.

4.- Afirma que o Tribunal de origem, ao concluir pela possibilidade de o Segundo Recorrido, ANTONIO MANUEL DE CARVALHO BAPTISTA VIEIRA, alienar o título em questão, teria violado os artigos 685 e 1.268, caput, e §2º, do Código Civil. Segundo o Recorrente, se lhe foi outorgado, por instrumento público, uma procuração em causa própria para alienar o referido título, apenas ele poderia, nos termos dos referidos artigos, proceder à essa alienação, não o Segundo Recorrido, subscritor da procuração.

5.- Aduz que o acórdão recorrido, ao subordinar a eficácia da referida procuração em causa própria ao registro no Serviço de Títulos e Documentos, teria violado o artigo 129, 9º, da Lei 6.015⁄73.

6.- Acrescenta que a BM&F não poderia ser considerada terceira de boa-fé, porque ciente de que esse tipo de negociação de título constitui prática corrente no mercado. Por isso ela deveria ter adotado as cautelas necessárias para que a compra e venda de que participou estivesse escoimada de vícios.

É o relatório.

VOTO

O EXMO SR. MINISTRO SIDNEI BENETI (Relator):

7.- SERGIO CIMATTI ajuizou ação ordinária contra BOLSA DE MERCADORIAS & FUTUROS – BM&F S⁄A e ANTONIO MANUNEL DE CARVALHO BATISTA VIEIRA.

Alegou que em fevereiro de 2004 celebrou, com o réu ANTONIO, um contrato de cessão de uso relativo a um título de operador especial da bolsa de valores BM&F (título nº 360, posteriormente nº 314). O contrato teria sido firmado pelo prazo de 12 meses, os quais foram sucessivamente renovados. Pela cessão de uso, o cessionário teria se obrigado ao pagamento mensal de R$ 9.000,00 (nove mil reais), dando, ainda, em garantia, uma procuração em causa própria formalizada por instrumento público, conferindo amplos poderes ao cedente para dispor do referido título.

Consta que, em dezembro de 2004, o réu ANTONIO sem qualquer autorização ou comunicação prévia, aderiu a um “programa de recompra de títulos patrimoniais” instruído pela ré BM&F por força do qual alienou àquela empresa o título de operador que era, supostamente, do Autor. Nessa operação teria recebido a quantia de R$ 821.784,00 (oitocentos e vinte e um mil e setecentos e oitenta e quatro reais), que não foi repassada ao Autor.

Na petição inicial alega-se que o cessionário do título não poderia tê-lo alienado, porque, embora tenha havido a transferência formal do título (transferência essa, aliás, necessária para consecução da finalidade do contrato: permtir ao cessionário operar na bolsa de valores), isso teria se dado através de um negócio jurídico marcado pela confiança entre as partes (negócio fiduciário). A real intenção das partes, ao menos aquela merecedora da proteção jurídica advinda da confiança por elas depositada, seria a de mera cessão temporária dos direitos de uso do título, em nenhum momento se teria contratado a sua transferência definitiva.

Por tais motivos, o Autor requereu: a) a invalidação do contrato firmado entre entre os réus no dia 28⁄12⁄04; e b) a declaração de que, por força da procuração com cláusula “em causa própria” expedida em seu benefício, apenas ele poderia dispor⁄alienar o título patrimonial de operador especial nº 314 da BM&F. Em caráter subsidiário pediu: c) que o contrato entabulado entre os réus fosse declarado ineficaz em relação a ele.

8.- O Juízo de Primeiro Grau houve por bem julgar antecipadamente a lide, sem a produção da prova testemunhal requerida pelo recorrente. Entendeu, basicamente, que a alienação do título à BM&F não poderia ser anulada, porque esta seria terceira de boa-fé.

Assinalou que o contrato realizado entre o Recorrente e o Segundo Recorrido vinculava apenas as partes e que tal contrato, além de tudo, trazia previsão expressa de que, em caso de alienação do título, o cedente seria indenizado pelo seu valor de mercado. Nessa medida restaria ao Autor pleitear, apenas, as perdas e danos previamente definidas no contrato. (fls. 412⁄420).

9.- O Tribunal de origem, negou provimento ao recurso de apelação interposto pelo autor.

Afirmou que o julgamento antecipado da lide com o indeferimento da prova testemunhal requerida não implicava cerceamento de defesa, porque a prova documental encartada ao processo tornaria desnecessária a produção de outros elementos de convicção.

Entendeu que a compra e venda não poderia ser desfeita, porque o alienante, o Segundo Recorrido, constava nos registros da BM&F, como legítimo proprietário e, portanto habilitado, de acordo com o Estatuto Social dessa empresa à promover a alienação do título. A regularidade formal do negócio jurídico entabulado e a patente boa-fé da BM&F inviabilizariam, portanto, o pedido anulatório.

Destacou, ainda, que restaria ao Autor, em princípio, fazer prevalecer a cláusula 11ª do contrato de cessão, nos termos da qual “o cessionário se obriga a indenizar o cedente por eventuais prejuízos que der causa em razão ao Título Patrimonial de Operador Especial, n. 360, particularmente a perda definitiva, devendo em tal caso a indenização corresponder ao valor de mercado do título, à época em que forem verificados os prejuízos”. (fls. 854).

10.- A irresignação veiculada no Recurso Especial não colhe êxito. De início é preciso considerar que tanto a sentença quanto o acórdão recorrido indicaram um fundamento que não foi impugnado pelo recorrente, a saber a existência de previsão contratual expressa regulando a situação do cedente na hipótese de perda ou alienação do título pelo cessionário. Nesses termos, o conhecimento do recurso estaria obstado pelo comando da Súmula 283⁄STF.

11.- Mesmo quando se considere que a referência constante do acórdão à cláusula 11ª do contrato de cessão, constitui mero obter dictum e não verdadeiro fundamento, ainda assim o recurso não poderia ser provido. Examinando-se analiticamente as teses recursais apresentadas, tem-se o seguinte:

12.- Não configura cerceamento de defesa o julgamento da causa sem a produção de prova pericial quando o Tribunal de origem, no estrito âmbito da liberdade de convencimento diante das provas já existentes, julga substancialmente instruído o feito, declarando a existência de provas suficientes para esse convencimento.

Hão de ser levados em consideração os princípios da livre admissibilidade da prova e do livre convencimento do juiz que, nos termos do artigo 130 do Código de Processo Civil, permitem ao julgador determinar as provas que entender necessárias à instrução do processo, bem como indeferir aquelas que considerar inúteis ou protelatórias.

Dessa forma, não há falar em nulidade processual, por ausência de produção de prova, uma vez que a decisão vergastada procedeu à devida análise dos fatos e a sua adequação ao direito.

Além disso, rever os fundamentos, que levaram a tal entendimento, demandaria reapreciação do conjunto probatório, o que é vedado em recurso especial, a teor da Súmula 7 deste Superior Tribunal de Justiça.

Nesse sentido:

AGRAVO REGIMENTAL. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS NA APLICAÇÃO DA TABELA PRICE. REVISÃO DOS VALORES DO SEGURO SUSEP. OPORTUNIDADE PARA PRODUÇÃO DE PROVA ORAL. INCIDÊNCIA DA TR NA ATUALIZAÇÃO DO SALDO DEVEDOR. CRITÉRIO DE AMORTIZAÇÃO DO SALDO DEVEDOR. REPETIÇÃO EM DOBRO DO INDÉBITO. (…) III – Não configura cerceamento de defesa o julgamento da causa, sem a produção de prova pericial, quando o Tribunal de origem entender substancialmente instruído o feito, declarando a existência de provas suficientes para seu convencimento. Incidência da Súmula 7 deste Superior Tribunal de Justiça. (AgRg no REsp 913.093⁄RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, DJe 22⁄08⁄2008);

PROCESSUAL CIVIL. MÚTUO. SFH. UNIÃO. LITISCONSORTE PASSIVA. AFASTAMENTO. PRODUÇÃO DE PROVA. PERÍCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. REEXAME FÁTICO. SÚMULA 7⁄STJ. JUROS REMUNERATÓRIOS. CAPITALIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. (…) 2 – Se as instâncias ordinárias entenderam suficientes para julgamento da causa as provas constantes dos autos, não cabe a esta Corte afirmar a ocorrência de cerceamento de defesa. Precedentes. (REsp 662.145⁄CE, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, DJ 23⁄05⁄2005).

13.- O fato de o recorrente ser beneficiário de uma procuração com a cláusula “em causa própria” também não interfere, no caso concreto, com a validade da alienação realizada pelo cessionário.

13.1.- O mandato em causa própria (procuratio in rem suam), apresenta um diferencial bem nítido em relação aos demais contratos de mandato, pois é outorgado em interesse do próprio mandatário. Por força dessa cláusula inserida no contrato de mandato, dispensa-se o mandatário de prestar contas de seus atos, e outorgam-se a ele amplos poderes de alienar o bem objeto do contrato, inclusive para ele próprio, podendo, por vezes, demandar judicialmente, com relação ao bem, em seu próprio nome.

A procuração em causa própria é um negócio jurídico muito utilizado no âmbito do direito imobiliário. Por meio desta procuração, o vendedor do imóvel constitui o próprio comprador como seu procurador para representá-lo em cartório por ocasião da lavratura da escritura definitiva de compra e venda. O comprador, no ato da compra e venda, representa a si e ao vendedor, dispensando este da conclusão do negócio e transferência imobiliária.

Essa procuração assume as características de um verdadeiro contrato, com forma especial, devendo ser redigida de forma clara e precisa, indicando a qualificação completa do outorgante e do outorgado, o objeto do mandato, as condições do seu exercício e, a declaração de que o valor fixado foi recebido pelo outorgante e que dá quitação. Equivale à venda, ou a cessão, quando contém os requisitos da coisa, preço e consenso, sendo pago o imposto de transmissão, se porventura devido, além de poder se igualar, ainda, a doação.

A propósito, a lição de ORLANDO GOMES, de que “intuitivamente, a procuração em causa própria é irrevogável não porque constitua exceção à revogabilidade do mandato, mas porque implica transferência de direitos.” (Contratos, 18ª Ed.:Forense, pág. 356)

O artigo 685 do Código Civil, que trata desse instituto, assim estabelece:

Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.

Como se verifica, o dispositivo em questão, além de assinalar a impossibilidade de extinção do contrato pela vontade unilateral do mandante ou morte de qualquer das partes, também garante ao mandatário o direito subjetivo de transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, desde que obedecidas as formalidades legais.

13.2.- A tese recursal é de que o cessionário do título não poderia tê-lo alienado porque, assim o fazendo, teria implicitamente frustrado o direito subjetivo de retomada do bem, conferido pelo mandado com cláusula “em causa própria”.

No caso dos autos, considerada a situação fática retratada, é seguro concluir que houve, efetivamente, por parte do recorrido ANTONIO, a quebra da confiança que caracteriza o contrato de mandato. Por isso não há como recusar o fato, à luz do que consta dos autos, repita-se, de que o cessionário não estava autorizado a alienar o título que tinha sido autorizado a usar, isso como um consectário natural do próprio negócio jurídico entabulado entre as partes.

Importa saber, porém, qual o destino da alienação realizada pelo cessionário não autorizado.

13.3.- A referência aos contratos imobiliários é útil não apenas porque neles se evidencia, com mais frequência, a atuação esse instituto, o que naturalmente permite uma melhor visualização dos seus contornos, mas também porque o regime especial de transmissão da propriedade imobiliária, que envolve o registro do bem no Cartório de Registro de Imóveis, segundo se infere dos autos, se assemelha ao regime de transmissão da propriedade desse título patrimonial de operador especial da bolsa de valores.

Com efeito, ainda segundo consta dos autos, apenas os profissionais regularmente registrados junto à BM&F com indicação dos respectivos títulos de operador especial estariam habilitados à negociar negociar na Bolsa de Valores.

Se a propriedade, em alguma medida, pode ser considerada como o enfeixamento das faculdades de usar, fruir e dispor do bem, e se apenas aquele que estivesse registrado junto a BM&F como legítimo portado do título patrimonial de operador de bolsa de valores estava habilitado à intermediar operações financeiras em Bolsa de Valores, não é desarrazoado afirmar que o recorrido⁄cedente era o efetivo proprietário do título. Tal como o proprietário de um imóvel é aquele assim indicado na Matrícula, deve-se concluir que o proprietário do título patrimonial de operador de bolsa de valores é aquele que o tem registrado em seu nome na própria BM&F.

13.4.- Forte nessa observação é curioso observar que o recorrido ANTONIO só pode ser considerado como um cessionário não autorizado à alienar o título quando se tem em vista a relação jurídica que ele mantinha com o Recorrente. Essa mesma pessoa, sob outro viés, deve ser considerada regular proprietário e legítimo possuidor do título.

No caso concreto sucedeu, mutatis mutandis, o que sucede em uma compra e venda de imóvel a terceiro com mandato anterior, não registrado, contendo a cláusula in rem suam.

Imagine-se, que alguém, regular proprietário de um imóvel, venda esse bem a outrem, mas, em vez de formalizar escritura pública com competente registro no Cartório de Registro de Imóveis, outorgue, simplesmente, ao comprador, uma procuração com a cláusula “em causa própria” por força da qual este comprador ficará habilitado a providenciar, quando lhe aprouver, as formalidades legais, necessárias à efetiva transferência da propriedade. Em seguida, como o imóvel legalmente ainda pertence ao alienante, essa mesma pessoa, de má-fé, o vende novamente a terceiro de boa-fé que, todavia, não dispensa os trâmites exigidos pela lei de escritura pública e registro.

Pergunta-se: nesse caso estará o primeiro adquirente autorizado a desconstituir a segunda alienação, que foi regularmente realizada? Parece que a solução, nesta hipótese, está na dependência de ter ou não havido o registro do contrato de mandato em causa própria.

Com efeito, não é obrigatório levar a procuração em causa própria ao registro no cartório de imóveis ou promover a respectiva averbação junto à matrícula do imóvel. Mas, enquanto não for averbada ou registrada, seja no Cartório de Registro de Imóveis, seja no Cartório de Registro de Títulos e Documentos (artigo 129, 9º, da Lei 6.015⁄73) ela não terá efeitos em relação a terceiros, vinculando exclusivamente as partes contratantes.

13.5.- Se, nos negócios imobiliários, é o alienante que, de ordinário, se conserva na propriedade da coisa, expedindo em benefício do adquirente a procuração com cláusula em “em nome próprio”; no caso dos autos deu-se o contrário. Aqui houve uma efetiva transferência da propriedade do título. Conforme destacado pelo Tribunal de origem, o título foi efetivamente transferido ao Segundo Recorrente, além disso, era o nome deste que constava, nos registros da BM&F como legítimo proprietário do título. Assim, é que ele apenas ostentava a qualidade de cessionário, em relação ao autor da ação, ora recorrente. Em relação a todo o resto, passou a ostentar a condição de novo proprietário do título. Isso, aliás, era indispensável ao exercício dos poderes conferidos pelo referido documento: de negociar ações na BM&F.

Nos termos do artigo 129, 9º, da Lei 6.015⁄73, devem ser levados a registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos os “instrumentos de cessão de direitos e de créditos, de sub-rogação e de dação em pagamento” a fim de que eles possam produzir efeitos em relação a terceiros.

Na hipótese, segundo consta do acórdão, não se cumpriu essa formalidade, de modo que o contrato de cessão vinculava apenas o Recorrente e o segundo Recorrido o qual, por isso, figurava em relação à coletividade como regular proprietário e legítimo possuidor do título, possuindo assim, todos os poderes inerentes à propriedade.

Nesse mesmo sentido, a lição permeia o seguinte julgado:

SOCIEDADE POR AÇÕES – AÇÕES NOMINATIVAS – TRANSFERÊNCIA. A PRETENSÃO AO EXERCÍCIO DE DIREITO, RELATIVAMENTE A SOCIEDADE, POR PARTE DE ACIONISTA, VINCULA-SE A AVERBAÇÃO DO TITULO AQUISITIVO NO LIVRO DE “REGISTRO DE AÇÕES NOMINATIVAS”. CORRETAMENTE POSTULADO O DIREITO DE RECESSO POR QUEM FIGURA NAQUELE LIVRO E NÃO POR TERCEIRO QUE, MEDIANTE PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA, TERIA ADQUIRIDO AS AÇÕES. (REsp 40.276⁄RJ, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, DJ 07⁄03⁄1994).

13.6.- Outra forma de se abordar a questão é aquela proposta pelo acórdão recorrido, centrada na necessidade de proteção da boa-fé do terceiro adquirente.

Em nosso ordenamento jurídico, segundo imperativo exegético, não existem direitos subjetivos absolutos. A própria dicção legal do artigo 685 do Código Civil já acena com essa máxima quando ressalta que para o mandatário transferir para si os bens objeto do mandato, deverá observar as formalidades legais.

No caso dos autos, o Tribunal de origem entendeu que o Recorrente estava impedido de pleitear a anulação da compra e venda, não apenas porque o negócio jurídico atacado havia sido celebrado regularmente (afinal a propriedade do título havia sido transferida ao mandatário⁄alienante), mas sobretudo, porque a boa-fé do terceiro adquirente (BM&F) deveria ser protegida.

A boa-fé foi tomada pelo acórdão como circunstância suficientemente para relativizar a prerrogativa de anulação do negócio jurídico que se poderia implicitamente extrair do artigo 685 do Código Civil.

A partir do silogismo proposto, se, nos termos do artigo 1.268 do Código Civil, os interesses do terceiro de boa-fé devem ser preservados até mesmo nos casos em que o alienante aparenta ser o proprietário do título, com muito maior razão deverão também os ser quando esse alienante, embora legítimo proprietário, tenha constituído em favor de outrem uma procuração com a cláusula “em causa própria”.

Em outras palavras, disse o Tribunal que a prerrogativa conferida ao cessionário do contrato em causa própria, deveria ser restringida pela regra do artigo 1.268 do Código Civil.

Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.

(…)

§ 2º Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.

Conforme destacado o título foi efetivamente transferido ao Segundo Recorrente, constando o seu nome nos registros da BM&F como legítimo proprietário do título.

Refuta-se, assim, também, a alegação de ofensa ao artigo 1.268 do Código Civil, porque impossível afirmar que ele não era o legítimo proprietário do título ou que revestia a condição de mero detentor deste.

Apenas, eventualmente, por hipótese, se poderia sustentar que o Recorrido ostentaria uma espécie anômala de propriedade resolúvel. Resolúvel pelo eventual exercício do direito de retomada previsto no contrato de mandato em causa própria. Essa circunstância não concorre porém, em favor do recorrente. Conforme destacado, vem fortalecer justamente a posição favorável à manutenção do contrato.

Afinal, o contrato formalizado por aquele investido de propriedade resolúvel com o terceiro de boa-fé, isto é, com quem não conhece esse gravame, deve estar ainda mais protegido de invalidações, considerando a regra do artigo 1.268 do Código Civil, do que aquele formalizado por quem ostenta a mera aparência de proprietário.

14.- Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial.

MINISTRO SIDNEI BENETI – Relator.

VOTO-VOGAL

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA:

Sr. Presidente, cumprimento os eminentes Advogados pelas sustentações orais, mas o voto do eminente Relator é irretorquível e é exatamente por isso que eu o acompanho integralmente, no sentido de negar provimento ao recurso especial.

Fonte: Boletim INR nº 5330 – Grupo Serac – São Paulo, 29 de Junho de 2012