CSM|SP: Registro De Imóveis – Dúvida Inversa – Admissibilidade – Título judicial – Qualificação – Cabimento – Irresignação Parcial – Dúvida prejudicada – Atendimento de exigências no curso da dúvida – Prorrogação inaceitável do prazo da prenotação – Declaração de quitação dos débitos condominiais – Exigência não mais justificável – Revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002 – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N° 0028707-86.2011.8.26.0100, da Comarca de CAPITAL, em que é apelante PRIMAFER INC. S/A e apelado o 5º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEISda referida Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso, de modo a confirmar a r. sentença que deu por prejudicada a dúvida, de conformidade com o voto do Desembargador Relator, que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento os Desembargadores IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça,ANTONIO AUGUSTO CORRÊA VIANNA, decano, SAMUEL ALVES DE MELO JUNIOR, HAMILTON ELLIOT AKEL E ANTONIO CARLOS TRISTÃO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Privado, em exercício, e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 24 de maio de 2012.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO

REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida Inversa – Admissibilidade – Título judicial – Qualificação – Cabimento – Irresignação Parcial – Dúvida prejudicada – Atendimento de exigências no curso da dúvida – Prorrogação inaceitável do prazo da prenotação – Declaração de quitação dos débitos condominiais – Exigência não mais justificável – Revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002 – Recurso não provido.

Primafer Inc. S/A adjudicou, em processo judicial, os direitos e as obrigações relacionados ao bem imóvel matriculado sob o n.º 25.690 do 5.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, que, no entanto, apresentado o título correspondente para registro, negou seu acesso ao fólio real, porquanto, entre outras exigências não questionadas, condicionou-o à exibição da declaração de quitação dos débitos condominiais.

Inconformada – seja porque a exigência impugnada é impossível de ser cumprida, diante da discussão judicial sobre a existência da dívida, seja porque é prescindível a prova de quitação das contribuições condominiais, à luz da redação do artigo 1.345 do Código Civil, que revogou o parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 -, a interessada, suscitando dúvida inversa, acompanhada de documentos (fls. 06/54), pede o registro da carta de adjudicação (fls. 02/05).

Provocado, o 5.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo ponderou: o conhecimento da dúvida está prejudicado, pois a interessada se insurge contra apenas uma das várias exigências formuladas; a lei de condomínio criou, há muito, uma hipótese de liquidação antecipada dos débitos como condição para aquisição do direito real; o texto do artigo 1.345 do Código Civil representa simplesmente a enunciação de regra que era perfeitamente assimilada e assente na doutrina e na jurisprudência sob a égide do Código de 1916; e o Conselho Superior da Magistratura entendeu, em mais de um julgamento, que o parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 não foi revogado pelo artigo 1.345 do Código Civil (fls. 56/58).

Depois da manifestação do Ministério Público (fls. 61/62), o juiz sentenciante deu por prejudicada a dúvida, porque evidenciada a irresignação parcial, mas assinalou que seria julgada procedente, se superado fosse o obstáculo processual, porquanto, destacando o seu posicionamento em outro sentido, o Conselho Superior da Magistratura firmou o entendimento de que a regra do parágrafo único do art. 4º da Lei nº 4.591/64 não foi revogada pela do artigo 1.345 do Código Civil (fls. 64/67).

Considerado o desfecho dado em primeiro grau, a interessada, ora recorrente, interpôs apelação, instruída com documentos (fls. 94/128), e, perseguindo a reforma da sentença, com determinação voltada ao registro do título judicial, argumentou: o conhecimento da dúvida é possível; à exceção da impugnada, cumpriu todas as demais exigências formulados pelo registrador; a regra do § 3.º do artigo 515 do Código de Processo Civil deve ser aplicada; a exigência de declaração de quitação assinada pelo síndico é descabida, pois suficiente a subscrita pela administradora do condomínio; a revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 pelo artigo 1.345 do Código Civil é, de todo modo, indiscutível; há um conluio entre o executado e o condomínio; e a pretensão do condomínio relativa ao débito condominial discutido em juízo está prescrita (fls. 71/93).

Recebido o recurso (fls. 129), a Procuradoria Geral de Justiça, após manifestação do Ministério Público em primeiro grau (fls. 131/132), propôs o desprovimento do recurso (fls. 137/139).

É o relatório.

A dúvida inversa, suscitada, com fundamento em criação pretoriana, pela interessada, ora apelante – que, inconformada com uma das exigências formuladas pelo registrador, ao invés de requerer-lhe a suscitação, apresentou-a diretamente ao MM Juiz Corregedor Permanente -, é, consoante jurisprudência consolidada, admitida pelo Conselho Superior da Magistratura deste Egrégio Tribunal de Justiça.

A origem judicial do título (carta de adjudicação) apresentado para registro não torna prescindível a qualificação: a prévia conferência, destinada ao exame do preenchimento das formalidades legais atreladas ao ato registral, é indispensável, inclusive nos termos do item 106 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

A apelante, ao suscitar a dúvida inversa, impugnou apenas uma das cinco exigências formuladas pelo registrador (fls. 02/05 e 20), enfim, questionou exclusivamente o condicionamento do acesso ao álbum imobiliário à exibição da declaração de quitação dos débitos condominiais, ressalvando que estava adotando as providências necessárias ao atendimento das demais (fls. 03), ou seja, a irresignação parcial, inibidora do conhecimento da dúvida, porque inadmissível a prolação de uma decisão condicional, resta caracterizada.

A apelante, de fato, ao conformar-se com algumas das exigências, deveria, primeiro, cumpri-las, reapresentar o título e, após uma nova qualificação, mantida a recusa, então, agora, à luz da única efetivamente questionada, requerer a suscitação da dúvida ou suscitar dúvida inversa.

Ademais, para viabilizar o exame, o conhecimento da dúvida suscitada, é inaceitável, no curso do procedimento correspondente, admitir o atendimento das exigências não impugnadas, sob pena de tolerar-se imprópria prorrogação do prazo da prenotação, com cumprimento, assim, fora do trintídio legal (artigo 205 da Lei n.º 6.015/1973).

Contudo, se o obstáculo ao registro da carta de adjudicação se limitasse à exigência de declaração de quitação dos débitos condominiais, a ser subscrita pelo síndico, a hipótese seria de julgamento improcedente da dúvida, de acordo, inclusive, com o entendimento pessoal do juiz sentenciante (cf. sentença proferida nos autos n.º 100.09.165632-6, em 21.08.2009), que, ressalvando-o, acedeu ao então prevalecente posicionamento do Colendo Conselho Superior da Magistratura.

Todavia, com o recente julgamento da Apelação Cível n.º 0019751-81.2011.8.26.0100, ocorrido no dia 12 de abril de 2012, o Conselho Superior da Magistratura, ao acompanhar o voto que proferi, sinalizou – embora negado provimento ao recurso por votação unânime, com confirmação da sentença que deu a dúvida por prejudicada -, a revisão da compreensão que vigorava.

Conforme lá assinalado, a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, com a entrada em vigor do novo Código Civil e, mormente, do seu artigo 1.345, foi revogada.

Naquele julgamento, uma vez desenvolvidas as características das obrigações reais e enfocada a sua eventual ambulatoriedade, assentou-se: a obrigação de pagar as contribuições condominiais, impostas aos condôminos – proprietários, a quem equiparados, para os fins do artigo 1.334 do Código Civil, e por força do § 2.º desta disposição legal, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas -, qualifica-se como propter rem (artigo 1.336, I, do Código Civil).

Também se afirmou: com o advento do Código Civil de 2002, a obrigação dos condôminos foi, no plano do direito positivo, ampliada – em prestígio de jurisprudência consolidada -, pois, nos termos do artigo 1.345, “o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios.”

E a positivação de tal regra confirmou – porque, caso contrário, seria despicienda -, a intransmissibilidade da obrigação propter rem de dare, que, na realidade, ontologicamente, à vista de sua natureza, não contempla, por si, os débitos nascidos antes da assunção de direitos sobre a coisa: quer dizer, o novo titular de direitos sobre a coisa não responde por tais débitos pretéritos.

Enfim, concluiu-se que as obrigações reais de dare não importam, em regra, responsabilidade pelas dívidas constituídas antes da aquisição de direitos sobre a coisa, ao contrário das obrigações reais de facere, que acompanham a coisa, transmitindose ao sucessor, independentemente de manifestação de vontade e do conhecimento de sua existência.

Aliás, se a obrigação de pagar as contribuições condominiais – típica obrigação propter rem de dare que se autonomiza no momento em que se vence, desatando-se da relação jurídica de natureza real, sua matriz -, contemplasse, por si, a responsabilidade pelo pagamento das contribuições condominiais constituídas antes da titularização de direitos sobre a unidade condominial, a positivação da regra insculpida no artigo 1.345 do Código Civil seria prescindível: cuidar-se-ia de disposição legal inócua, à vista do artigo 1.336, I, do mesmo diploma legal.

Além disso, a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 não faria sentido, uma vez valorado o comando emergente do artigo 12 da Lei n.º 4.591/1964, que, antes do Código Civil de 2002, já revelava a natureza propter rem da obrigação de pagamento das contribuições condominiais.

Não seria razoável condicionar a alienação da unidade condominial e a transferência de direitos a ela relacionados à prévia comprovação da quitação das obrigações do alienante para com o condomínio, se a obrigação propter rem de dare, por sua natureza, abrangesse os débitos constituídos anteriormente à aquisição de direitos sobre a coisa.

Ora, se o novo titular de direitos sobre a unidade condominial respondesse, a par dos débitos atuais, também pelos passados, estes também exigíveis do alienante, qual seria, então, a lógica razoável do condicionamento, ainda mais à vista da garantia representada pelo imóvel, passível de penhora em futura execução? Na realidade, nenhuma.

Sob outro prisma, a atual redação do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, dada pela Lei n.º 7.182/1984, veio substituir a sua versão original, reproduzida, no entanto, pelo texto do artigo 1.345 do novo Código Civil, ressalvada a referência, agora feita, aos juros moratórios.

Quer dizer: as modificações legislativas reforçam, em primeiro lugar, a intransmissibilidade da obrigaçãopropter rem de dare e, por fim, porque incompatível com a regra do artigo 1.345 do Código Civil, a revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964.

Com efeito, o restabelecimento, pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002 – com o acréscimo relativo aos juros moratórios -, do texto original do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, antes suprimido pela sua redação atual, oriunda da Lei n.º 7.182/1984, é sintomático da revogação assinalada.

Em suma: as características da obrigação propter rem de dare, especialmente no tocante à amplitude da responsabilidade do titular de direitos sobre a coisa pelos débitos a ela atrelados – extraídos da interpretação sistemática, primeiro, do artigo 12 com o parágrafo único do artigo 4.º (em suas duas versões), ambos da Lei n.º 4.591/1964, e, depois, do artigo 1.336, I, com o artigo 1.345, do Código Civil de 2002 -, e a evolução histórica das modificações legislativas confortam a revogação afirmada.

ratio do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, direcionada à tutela da saúde financeira e do equilíbrio econômico do condomínio, fica esvaziada, diante da norma retirada do texto do artigo 1.345 do Código Civil de 2002, igualmente voltada, em substituição à norma anterior, à proteção, sob nova e mais consistente capa, da propriedade comum.

Tal regra, é certo, perdeu a sua instrumentalidade, não podendo subsistir – não apenas em razão da revogação tácita aludida -, mas também porque, sem finalidade que a justifique razoavelmente, entrava o tráfego econômico, a circulação dos bens imóveis e a correspondência entre a realidade registrária e a factual.

Por isso, revogada a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, a prévia comprovação de quitação dos débitos condominiais não é mais condição para transferência de direitos relativos à unidade condominial.

Pelo exposto, nego provimento ao recurso, de modo a confirmar a respeitável sentença que deu por prejudicada a dúvida.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.J.E. de 26.07.2012)