Registro de Imóveis – Hipoteca Judicial – Qualificação registrária admissível – Falta de impugnação – Admissibilidade do conhecimento da dúvida – Pertinência da desqualificação do mandado judicial para registro – Hipoteca da totalidade do imóvel – Devedora proprietária de parte ideal do bem imóvel objeto da hipoteca – Promessa de venda irretratável da parte ideal – Cláusula de impenhorabilidade – Princípios da continuidade e da disponibilidade – Ausência de requisitos subjetivo e objetivo da hipoteca – Natureza propter rem da obrigação afastada – Dúvida procedente – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N° 0000006-12.2011.8.26.0587, da Comarca de SÃO SEBASTIÃO, em que é apelante ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA ALDEIA DA BALEIA e apelado o OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da referida Comarca.

‘ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento à apelação, de conformidade com o voto do Desembargador Relator, que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento os Desembargadores IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça,ANTONIO AUGUSTO CORRÊA VIANNA, decano, SAMUEL ALVES DE MELO JUNIOR, HAMILTON ELLIOT AKEL E ANTONIO CARLOS TRISTÃO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Privado, em exercício, e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 24 de maio de 2012.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO

REGISTRO DE IMÓVEIS – Hipoteca Judicial – Qualificação registrária admissível – Falta de impugnação – Admissibilidade do conhecimento da dúvida – Pertinência da desqualificação do mandado judicial para registro – Hipoteca da totalidade do imóvel – Devedora proprietária de parte ideal do bem imóvel objeto da hipoteca – Promessa de venda irretratável da parte ideal – Cláusula de impenhorabilidade – Princípios da continuidade e da disponibilidade – Ausência de requisitos subjetivo e objetivo da hipoteca – Natureza propter rem da obrigação afastada – Dúvida procedente – Recurso não provido.

A interessada, ora apelante, inconformada com a desqualificação para registro do mandado de hipoteca judicial do imóvel objeto da matrícula n.º 29.394, requereu a suscitação da dúvida pelo apelado, Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Sebastião/SP (fls. 07/10), que a providenciou, mas mantendo a qualificação negativa, pois, alega, a executada Ana Luíza não é proprietária exclusiva do imóvel; ela prometeu a venda de sua parte ideal a uma das condôminas, não tendo mais a faculdade de dispor do bem; os outros dois coproprietários não figuram como executados; a cláusula de impenhorabilidade torna a coisa onerada insuscetível de hipoteca; e, por fim, a natureza propter rem da obrigação não justifica a violação do princípio da continuidade (fls. 03/05).

Ao requerer a suscitação da dúvida, a interessada ponderou: a obrigação da devedora tem naturezapropter rem; o bem imóvel responde pelo débito; a cláusula de impenhorabilidade não impede o registro da hipoteca; a promessa de venda não transferiu a propriedade pertencente à devedora; em resumo, o título apresentado comporta registro imobiliário (fls. 07/10).

Uma vez notificada (fls. 05 verso), a interessada não apresentou impugnação (fls. 34) e, depois da manifestação do Ministério Público (fls. 36), o MM Juiz Corregedor Permanente julgou procedente a dúvida, mas apenas porque a hipoteca não poderia recair sobre a totalidade do bem imóvel, se a devedora é somente coproprietária da coisa (fls. 38/39).

Contra a sentença proferida, a interessada interpôs recurso de apelação, reiterando, em síntese, suas alegações pretéritas, com a finalidade de obter o julgamento improcedente da dúvida e, subsidiariamente, a determinação visando ao registro de hipoteca sobre a parte ideal pertencente à executada (fls. 46/54).

Recebido o recurso (fls. 55), a Douta Procuradoria Geral da Justiça propôs o não provimento do recurso (fls. 61/64).

Por meio do site da ARISP, obteve-se cópia da matrícula n.º 29.394 do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Sebastião/SP, cuja juntada aos autos ora é determinada.

É o relatório.

A origem judicial do título (mandado de hipoteca judicial) apresentado para registro não torna prescindível a qualificação: a prévia conferência, destinada ao exame do preenchimento das formalidades legais atreladas ao ato registral, é indispensável, inclusive nos termos do item 106 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

A falta de impugnação da dúvida (fls. 34), embora formalizada a notificação imposta pelo inciso III do artigo 198 da Lei n.º 6.015/1973 (fls. 05 verso), não obsta o seu conhecimento, nos termos do artigo 199 da Lei n.º 6.015/1973.

A hipoteca judicial, destinada a garantir, contra a possibilidade de inadimplemento, a satisfação do crédito extraído da sentença condenatória, recaiu sobre a totalidade do imóvel matriculado sob o n.º 29.394 do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Sebastião/SP (fls. 11), mas Ana Luiza Pereira Fernandes, contra quem proferida a decisão judicial, é proprietária apenas da parte ideal correspondente a 44% de tal bem (registro n.º 08 da matrícula n.º 29.394).

Trata-se de circunstância impeditiva do registro do mandado judicial, considerada a possibilidade de excussão, ínsita à garantia hipotecária: ora, o assento pretendido representaria violação do princípio da continuidade – comprometendo o exato encadeamento subjetivo das sucessivas transmissões e aquisições de direitos reais imobiliários -, e vulneração do princípio da disponibilidade, sob o ângulo quantitativo, porquanto a ninguém é dado transmitir mais direitos do que tem.

Aliás, se Ana Luiza Pereira Fernandes, condômina, está autorizada, exclusivamente, a alienar a sua parte ideal (artigo 504 e 1.314 do Código Civil), a hipoteca, incidindo sobre a totalidade do bem imóvel, é inválida: o requisito subjetivo de validade, previsto na primeira parte do caput do artigo 1.420 do Código Civil, restou inobservado.

Ademais, a inviabilizar, inclusive, a hipoteca da parte ideal pertencente à Ana Luiza Pereira Fernandes – admitida, em tese, independentemente da divisibilidade do bem imóvel e do consentimento das outras duas condôminas (§ 2.º do artigo 1.420 do Código Civil) -, observo: com o registro do instrumento particular de promessa de venda e compra por meio do qual ela se comprometeu a transferir, à coproprietária Maria Lígia Vieira Gomes Pereira Fernandes, a fração ideal que possui no bem imóvel, seu poder de dispor da coisa restou sensivelmente limitado (registro n.º 10 da matrícula n.º 29.394).

Diante do registro do instrumento contratual, onde não se faz menção à existência de cláusula de arrependimento, a propriedade do bem imóvel – valorado o direito real de aquisição constituído em favor da promitente compradora (artigos 1.225, VII, 1.227 e 1.417 do Código Civil) -, permanece sob a titularidade de Ana Luiza Pereira Fernandes, promitente vendedora, apenas “como mera garantia do pagamento do preço.”

Marco Aurelio S. Viana, ao frisar que, pago o preço ajustado, o direito à adjudicação compulsória do bem imóvel decorre da impossibilidade de arrependimento, e não necessariamente do registro do instrumento contratual, pontua: “em verdade não se justifica a exigência de registro prévio do contrato senão como forma de tutelar o promitente comprador contra a alienação por parte do promitente vendedor, limitando ou reduzindo o poder de disposição deste, ao mesmo tempo que arma o adquirente de sequela, admitindo que obtenha a escritura até mesmo contra terceiro, na forma indicada no art. 1.418.”

Por isso, constituído o direito real, “novos atos de disposição ou de oneração praticados pelo promitente vendedor em benefício de terceiros, ainda que de boa-fé, são ineficazes frente ao promitente comprador”.

Logo, ainda que a propriedade exclusivamente tabular, esvaziada, integre o patrimônio da promitente vendedora, soa deveras contraditório, dentro do contexto exposto, admitir o acesso do mandado de hipoteca judicial ao álbum imobiliário, porque se trata, repita-se, de garantia real vocacionada para alienação do bem sobre o qual recai, aqui estorvada.

Com efeito, uma sequela evanescida, fragilizada, desprovida de aptidão para sujeitar, por vínculo real, o bem imóvel dado em garantia ao cumprimento da obrigação, é incompatível com a hipoteca.

De mais a mais, se Ana Luiza Pereira Fernandes está privada da livre disposição de sua parte ideal, então por força do direito real de aquisição, e, com isso, não tem legitimação para aliená-la, a hipoteca judicial também resta inexequível (artigo 1.420, caput, 1.ª parte, do Código Civil).

Na realidade, poder-se-ia, em tese, cogitar de uma garantia que recaísse sobre o saldo do preço não pago, a que, no caso, ainda tem direito a promitente vendedora, mas se trata de objeto insuscetível de hipoteca, à luz do rol taxativo contemplado no artigo 1.473 do Código Civil.

Em síntese: à vista do seu conteúdo e de sua oponibilidade erga omnes, o direito real de aquisição atribuído à Maria Lígia Vieira Gomes Pereira Fernandes obsta, logicamente, o registro constitutivo da hipoteca judicial.

Sob outro prisma, a despeito da cláusula restritiva de impenhorabilidade – associada, no caso vertente, à de incomunicabilidade (averbação n.º 09 da matrícula n.º 29.394) -, não implicar a inalienabilidade do bem imóvel e, particularmente, da parte ideal pertencente à Ana Luiza Pereira Fernandes, não há, no caso concreto, como descartar seu potencial impediente do registro do mandado de hipoteca judicial.

De fato, tal espécie de hipoteca, não satisfeita a obrigação cujo cumprimento é por ela garantida, leva, uma vez desencadeada a execução, à penhora do imóvel sobre o qual recaiu, imprescindivelmente: eventual inércia do credor importaria, aliás – devido ao comportamento concludente extraído da ausência de manifestação de vontade no sentido da constrição judicial -, renúncia tácita da garantia real.

Destarte, vedada a penhora do bem especializado, a hipoteca é inadmissível, porquanto não é possível preencher o seu requisito objetivo de validade, estabelecido no artigo 1.420, caput, 2.ª parte, do Código Civil. A propósito, Ademar Fioranelli perfilha idêntico entendimento:

Por seu lado, a cláusula de impenhorabilidade visa subtrair o imóvel da garantia de credores, que não podem apreender o bem para satisfação de obrigações. Ainda que o proprietário detenha o poder de disposição, pela imposição isolada da mesma cláusula, não poderá oferecer o bem assim gravado em garantia “hipotecária” ou de “alienação fiduciária”, direitos reais de garantia típicos que têm como escopo assegurar a satisfação dos créditos concedidos. As conseqüências imediatas, quando promovida a execução para cumprimento da obrigação contraída, são a penhora e a expropriação da coisa; e para a alienação fiduciária, a perda do domínio em favor do credor fiduciário, após purgada a mora.

Por fim, as obrigações da devedora não nasceram de um direito real, não se qualificando, por conseguinte, e ao contrário do afirmado pela interessada, como propter rem: a sua fonte, na verdade, é o enriquecimento sem causa.

Realmente, o que a tornou devedora foram os serviços prestados em seu benefício ou apenas postos à sua disposição, ainda que não usufruídos.

De acordo com Luciano de Camargo Penteado, as obrigações reais, chamadas propter rem (por causa da coisa), caracterizam-se pela sua causa aquisitiva, assentada na “titularidade de uma situação jurídica de direito das coisas”, e não, assim, na manifestação de vontade, na lei ou no enriquecimento sem causa .

Desse modo, também sob esse enfoque, o registro do mandado de hipoteca judicial, contemplando a garantia a totalidade do bem imóvel especializado, resta inviabilizado.

Pelo todo exposto, nego provimento à apelação.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.J.E. de 01.08.2012)