CSM|SP: Registro de Imóveis – Débito condominial – Unidade condominial pertencente a mais de uma pessoa – Ação de cobrança promovida em face de um dos proprietários – Acordo judicial – Dação em pagamento da totalidade do bem imóvel – Ausência de anuência dos demais proprietários – Invalidade e ineficácia – Princípio da continuidade e princípio da disponibilidade – Ofensa – Desqualificação do título judicial confirmada – Dúvida procedente – Recurso desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N° 0039765-86.2011.8.26.0100, da Comarca da CAPITAL, em que é apelante CONDOMÍNIO DR BOGHOS BOGHOSSIAN e apelado 18º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS da referida Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento à apelação, de conformidade com o voto do Desembargador Relator, que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento os Desembargadores IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, WALTER DE ALMEIDA GUILHERME, decano em exercício, SAMUEL ALVES DE MELO JUNIOR, ANTONIO JOSÉ SILVEIRA PAULILO e ANTONIO CARLOS TRISTÃO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Privado e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 12 de setembro de 2012.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO

REGISTRO DE IMÓVEIS – Débito condominial – Unidade condominial pertencente a mais de uma pessoa – Ação de cobrança promovida em face de um dos proprietários – Acordo judicial – Dação em pagamento da totalidade do bem imóvel – Ausência de anuência dos demais proprietários – Invalidade e ineficácia – Princípio da continuidade e princípio da disponibilidade – Ofensa – Desqualificação do título judicial confirmada – Dúvida procedente – Recurso desprovido.

O interessado, ora apelante, inconformado com a desqualificação para registro do mandado judicial de dação em pagamento, tendo por objeto o bem imóvel descrito na matrícula n.º 85.887, requereu a suscitação da dúvida pelo apelado, 18.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo (fls. 08/12), que a providenciou, aparelhando-a com documentos (fls. 04/33).

Ao manter a qualificação negativa, ponderou: o imóvel dado em pagamento nos autos do processo de cobrança instaurado pelo apelante, credor de contribuições condominiais, não pertence apenas ao réu Sidney Camargo de Oliveira, o que impede, portanto, o acesso ao fólio real perseguido, diante da impossibilidade de alguém transmitir mais do que tem (fls. 02/03).

Na sua manifestação, instruída com documentos (fls. 42/51), o interessado alegou: os proprietários da unidade condominial são devedores solidários, no tocante às contribuições condominiais; valendo-se da faculdade legal, ajuizou ação apenas em face de um dos proprietários, Sidney Camargo de Oliveira; julgado procedente o pedido, o réu deu o imóvel em pagamento; a obrigação dos condôminos tem natureza propter rem; a unidade condominial garante o pagamento das despesas condominiais; o acordo foi homologado judicialmente; a tutela dos interesses do condomínio prevalece; no momento, não é mais possível ampliar o polo passivo da ação; enfim, descabidas as exigências formuladas, a dúvida deve ser julgada improcedente (fls. 35/41).

Após o parecer do Ministério Público (fls. 53/54), o MM Juiz Corregedor Permanente julgou procedente a dúvida (fls. 56/59), o interessado interpôs apelação, reiterando suas ponderações pretéritas (fls. 63/75), o recurso foi recebido nos seus regulares efeitos (fls. 76) e, depois da manifestação do Ministério Público (fls. 78/79), os autos foram remetidos ao Conselho Superior da Magistratura (fls. 81), abrindo-se vista, em seguida, à Procuradoria Geral de Justiça, que se pronunciou pelo desprovimento do recurso (fls. 84/85).

É o relatório.

O bem imóvel identificado na matrícula n.º 85.887 do 18.º Oficial de Imóveis desta Capital pertence, em condomínio, a Sylvio Camargo de Oliveira, Dorothi Santos de Oliveira, casados sob o regime da comunhão universal de bens, e a Sidney Camargo de Oliveira (fls. 29/33), que é casado, sob o regime da comunhão parcial de bens, com Katia Sant’anna de Souza Oliveira (fls. 28).

Com o propósito de saldar o débito condominial, objeto de condenação judicial, Sidney Camargo de Oliveira celebrou acordo com o interessado, ora apelante, homologado judicialmente, ajustando o pagamento indireto, mediante entrega da unidade condominial, sem, contudo, colher a concordância dos coproprietários do bem imóvel.

Destarte, o Oficial de Registro agiu corretamente, ao recusar o acesso do título ao álbum imobiliário, fundado nos princípios da continuidade e da disponibilidade (fls. 05/06 e 07/13): aliás, a origem judicial do título não dispensa a qualificação, a conferência destinada ao exame do preenchimento das formalidades legais atreladas ao ato registral.

É certo, não se ignora, que todos os proprietários da unidade condominial são responsáveis pelo pagamento das contribuições condominiais: a obrigação é solidária, respondendo cada um deles, perante o credor, pela integralidade da dívida. Por isso, o débito condominial, a critério do credor, pode ser exigido de quaisquer dos coproprietários, vale dizer, de um, alguns ou de todos.

Também é inegável: a obrigação de pagamento das contribuições condominiais se qualifica como propter rem: deve-se por causa da coisa (artigo 1.336, I, do CC/2002); de acordo com Luciano de Camargo Penteado, “a situação de direito real é causa eficiente próxima do surgimento da obrigação”.

De todo modo, nem a solidariedade aventada nem a singularidade de tal obrigação – expressa em sua causa aquisitiva, assentada na “titularidade de uma situação jurídica de direito das coisas”, em síntese, distinguida por sua fonte, sua origem no estatuto de um direito real, ao qual submetida a relação jurídica de soberania estabelecida entre o titular e a coisa -, levam, in concreto, à desconsideração dos princípios da continuidade e da disponibilidade.

Sequer oportunizam a um dos devedores, o eleito pelo credor – ao exigir judicialmente o cumprimento da obrigação real -, dar, válida e eficazmente, em pagamento da dívida condominial, sem a anuência dos demais coproprietários – também devedores, não se discute -, a totalidade do imóvel comum, mesmo que seja o vinculado ao débito condominial.

A despeito de solidária e propter rem a obrigação, o acordo de vontades entabulado entre um dos devedores solidários e o credor condominial, contemplando dação em pagamento, então com substituição da prestação pecuniária (prestação devida) por imóvel (prestação substituta), não basta, apesar da chancela judicial, para conferir validade e eficácia ao negócio jurídico e afastar a aplicação dos princípios da continuidade e disponibilidade.

A relação entre as partes, na dação em pagamento, rege-se, se determinado o preço da coisa, pelas regras do contrato de compra e venda (artigo 357 do CC/2002), embora, é verdade, não se confunda com tal modalidade contratual, “porque supõe necessariamente obrigação preexistente, enquanto a venda se basta a si própria.”

Logo, o coproprietário do bem imóvel não pode, validamente, sem observar o direito de preferência dos outros coproprietários, alienar a estranhos – nem, portanto, dar-lhes em pagamento -, a sua parte ideal da coisa (artigos 504 e 1.322, ambos do CC/2002) e, assim, muito menos, tem aptidão, ainda que objetivando a quitação de débito condominial, para, sem a concordância dos outros titulares de domínio, vender ou dar em pagamento a totalidade do bem imóvel comum.

Segundo Orlando Gomes, o condômino de coisa indivisível, porque desprovido do poder de disposição, pressuposto para a execução da obrigação de transferência assumida – ou por meio de venda e compra ou mediante dação em pagamento -, “não pode vender a estranho sua parte se outro consorte a quiser tanto por tanto”, e tampouco, por conseguinte, tem legitimidade para alienar o bem imóvel comum.

O devedor solidário, no exercício de sua liberdade contratual, escorado no princípio da autonomia privada, é despido de poder, de legitimidade para transferir direitos que não lhe pertencem.: particularmente, além dos condicionamentos impostos à venda de sua fração ideal da coisa, não tem aptidão para, em dação em pagamento, transmitir as partes ideais sob o domínio dos outros coproprietários.

Induvidosamente, superado o plano da validade, falta-lhe, para utilizar expressão cunhada por Antônio Junqueira de Azevedo, legitimidade-fator de eficácia, “qualidade do agente consistente na aptidão, obtida pelo fato de estar o agente na titularidade de um poder, para realizar eficazmente um negócio jurídico”.

Com efeito, não recebeu poderes para alienar as frações ideais dos coproprietários do imóvel comum. A situação equiparase às vendas a non domino. Por isso, a dação em pagamento, mesmo que eficaz entre os contratantes, não produz, ante a inexistência de uma relação jurídica (procuração, mandato) os efeitos normais, a eficácia diretamente visada, a que alude o afamado professor das Arcadas.

Consoante adverte Orlando Gomes: Parece absurda a venda de coisa alheia, pois, intuitivamente, a coisa vendida deve pertencer ao vendedor. Uma vez, porém, que, pelo contrato, o vendedor se obriga, tão-só, a transferir a propriedade da coisa, nada obsta que efetue a venda de bem que ainda lhe não pertence; se consegue adquiri-lo para fazer a entrega prometida, cumprirá especificamente a obrigação; caso contrário, a venda resolve-se em perdas e danos. A venda de coisa alheia não é nula, nem anulável, mas simplesmente ineficaz. Se um condômino vende a coisa comum é, entretanto, anulável. (grifei).

Logo, a respeitável decisão de primeiro grau não admite reforma: o assento pretendido – baseado em negócio jurídico anulável e, no mínimo, ineficaz –, representaria violação do princípio da continuidade, de modo a comprometer o exato encadeamento subjetivo das transmissões e aquisições de direitos reais imobiliários, e, mormente, importaria vulneração do princípio da disponibilidade, pois a ninguém é dado transmitir mais direitos do que tem.

De resto, a hipótese agitada nestes autos não se confunde com os precedentes jurisprudenciais lembrados pelo apelante, isto é, com as situações de constrições e alienações judiciais da totalidade da unidade condominial, efetivadas em processos de cobrança de despesas condominiais, em execuções desencadeadas em face de um ou de alguns dos coproprietários, pois despojadas da marca da voluntariedade, do traço da autonomia privada.

Em arremate, daquelas, direcionadas à realização coativa da prestação pecuniária, os coproprietários, terceiros juridicamente interessados, são cientificados – ou depois, na constrição, ou antes, na hipótese de alienação judicial -, de sorte a possibilitar-lhes o exercício do contraditório e da ampla defesa, até porque ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal (artigo 5.º, LIV, da CF/1988).

Pelo todo exposto, nego provimento à apelação.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.J.E. de 10.01.2013 – SP)