TJ|RS: Ação declaratória de nulidade de escritura de compra e venda – Simulação – Doação inoficiosa – Conversão substancial do negócio – Recurso desprovido.

EMENTA
Ação declaratória de nulidade de escritura de compra e venda. Simulação. Doação inoficiosa. Conversão Substancial do Negócio. O apelante pretende obter a declaração de nulidade de duas escrituras públicas de compra e venda de imóveis realizadas entre seu falecido avô e seu tio. Ficou cabalmente demonstrado nos autos a existência de simulação, nos termos dos incisos I e II do § 1º do art. 167 do CCB/02, sob o manto de uma doação de pai para filho como forma de retribuição, uma vez que o filho favorecido ficou responsável pelos cuidados do pai na velhice e doença por trinta anos. Considerando que a doação superou infimamente o limite de 50% da parte disponível, isto é, em menos de 5%, bem andou o juízo de primeiro grau aproveitando a vontade do falecido, à luz do art. 549 CCB e segundo os princípios da solidariedade e da função social da família, para julgar válida a doação realizada em favor do apelado, qualificando-a como remuneratória. Recurso desprovido. (TJRS – Apelação Cível nº 70055882849 – São Valentim – 17ª Câmara Cível – Rel. Des. Elaine Harzheim Macedo – DJ 18.09.2013)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os eminentes Senhores DES. LUIZ RENATO ALVES DA SILVA E DES.ª LIÉGE PURICELLI PIRES.
Porto Alegre, 12 de setembro de 2013.
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO – Relatora.
RELATÓRIO
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO (Relatora):
RICARDO BIGOLIN apelou da sentença de fls. 56-61, que resultou na improcedência do pedido de anulação de doação inoficiosa que deduziu contra VITALINO BIGOLIN e NELI FRANCIESCKI BIGOLIN. O autor foi condenando a pagar as custas processuais e os honorários advocatícios fixados em 2% do valor atualizado da causa, e a exigibilidade da sucumbência foi suspensa devido à concessão do benefício da AJG.
Expôs que seu pedido objetiva a declaração de nulidade das escrituras públicas de compra e venda de n, 11579, e de n. 11580, lavradas em 12.04/2007, no Livro 63, do Tabelionato da Comarca de São Valentim, que transferiram ao apelado Vitalino Bigolin as áreas de 97.750m² e 68.250m², constantes das matrículas n. 1.376 e n. 1.374 do Registro Imobiliário de São Valentim. Destacou que as datas das escrituras antecedem a morte do pai do beneficiário, Sr. Pedro Bigolin, em apenas um mês e dezenove dias (falecimento em 30.06.2002), indicando a existência de doação inoficiosa.
Defendeu estar equivocada a sentença que validou o negócio jurídico simulado (“compra e venda travestida de doação”), mediante aproveitamento da vontade do falecido, uma vez que o valor do negócio superou a metade disponível dos bens deste. Alegou ter ocorrido violação à regra do art. 549 CCB, porque se desrespeitou o limite legal que permite a livre disposição de 50% dos bens deixados pelo “de cujos”. Pugnou pela reforma da sentença ao efeito de ver declarada a nulidade absoluta do negócio jurídico inquinado.
CONTRARRAZOADO O RECURSO (FLS. 69-74), SUBIRAM OS AUTOS A ESTA CORTE (FL. 75), E VIERAM CONCLUSOS PARA JULGAMENTO EM 08.08.2013 (FL. 76).
Registra-se que foi observado o disposto nos artigos 549, 551 e 552 do CPC, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.
É o relatório.
VOTO
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO (Relatora):
Pedro Bigolin era proprietário de três de áreas de terras, conforme se observa a partir dos registros imobiliários de fls. 18-20. Constituiu casamento com Pierina Bigolin e tiveram três filhos: Vitalino, Ivone e Adelino (fl. 14). Esclareça-se que, apesar de o nome do filho Adelino não ter constado da certidão de óbito de fl. 17, a prova da filiação foi cumprida mediante juntada da certidão de nascimento de fl. 14.
O filho Adelino Bigolin era pré-morto (fl. 15) – seu passamento ocorreu em 30.06.2002 -, e havia deixado dois filhos: Josiane e Ricardo (autor da presente demanda – fl. 13).
Nesta demanda, o que se discute é a pretensão do neto (Ricardo-autor) que busca invalidar duas escrituras de compra e venda realizadas entre o avô (Pedro) e um de seus filhos (Vitalino, seu tio), alegando que, na realidade, houve uma simulação para encobrir uma doação.
Na esteira da conclusão manifestada na sentença, verifica-se que, de fato, houve uma simulação de compra e venda relativamente aos imóveis registrados sob o n. 1.374, e n. 1.376 (fls. 18-20), haja vista que se operou a transferência de domínio, embora não haja provas do efetivo pagamento do preço, a teor do art. 481 CCB, pelo favorecido.
De acordo com o inciso II do § 1º do art. 167 CCB, existe simulação de negócio jurídico quando estes “contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira”.
No caso em apreço, as escrituras de fls. 18-20, transferem dois imóveis para Vitalino Bigolin, a título de compra e venda, porém, relativamente ao imóvel registrado sob o n.1.374, não consta da escritura o preço pago pelo terreno; e, quanto ao imóvel registrado sob o n. 1.376, anotou-se que o bem foi vendido por R$5.000,00, muito embora a avaliação da Prefeitura tenha sido pelo valor de R$19.671,38.
De sorte que, está correta a conclusão do juízo “a quo”, que reconheceu a presença de simulação a teor do art. 167 CCB.
Há, todavia, que se examinar o segundo aspecto da sentença – objeto do apelo – e que diz respeito com aproveitamento da vontade do falecido para fins de convalidar os negócios jurídicos inquinados.
Com efeito, o juiz de primeiro grau examinou o que restou do negócio jurídico entabulado pelas partes sob a ótica do art. 549 CCB, haja vista que o art. 167 c/c art. 170, ambos do CCB, consagram o princípio da conservação do contrato ou do aproveitamento da vontade.
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
Na espécie, o juízo singular contemplou a possibilidade de aplicar o instituto da conversão substancial do negócio. Ou seja, partiu do pressuposto de que era válida a vontade de Pedro Bigolin de doar os imóveis em favor do filho Vitalino, que ficou responsável por seus cuidados – na velhice e doença ao longo de trinta anos -, muito embora essa vontade tenha sido manifestada no âmbito de um contrato nulo (escritura de compra e venda simulada). In verbis:
Conforme facilmente se intui do próprio teor da contestação (fls. 33 a 39), a transferência dos bens aos demandados deu-se gratuitamente, como forma de compensação financeira pelo fato de Vitalino Bigolin “estar assistindo e cuidado da saúde do seu Pai por longos 30 (trinta) anos) onde estava com doença grave, câncer que acabou falecendo. A dedicação incondicional do filho ao pai desde jovem durante os longos anos de enfermidade com dezenas e centenas de viagens de São Valentim a cidade de Erechim e Porto Alegre, além das inúmeras dividas contraídas, sensibilizou os pais e como forma de recompensa transferiu-lhes dois imóveis para recompensar o mínimo de serviços prestas, pratica comum nas famílias civilizadas” – sic (fls. 33 e 34).
Nesse contexto, à míngua de qualquer adminículo de prova de que tenha havido alguma operação financeira nos negócios inquinados (saída de numerário do patrimônio dos réus e ingresso no patrimônio do de cujus Pedro Bigolin), prova essa que incumbia aos réus produzir (art. 333, II, do CPC), força inferir que as partes contratantes acabaram, realmente, por realizar verdadeira doação, contrariamente ao que constou das escrituras públicas.
O expediente, muito provavelmente, teve o ilusório propósito de tentar evitar futuro questionamento jurídico a respeito da higidez dessas transferências, evitando a frustração das liberalidades.
A hipótese, portanto, flagra a prática de atos simulados (contratos de compra e venda ocultando doações), cuja invalidação exige pronunciamento de ofício (arts. 167, §1º, II, e 168, parágrafo único, do CC), o que implicaria, em linha de princípio, o retorno das partes ao estado anterior (art. 182 do CC).
Ocorre que as simulações no caso telado não têm o condão de tornar inválidas as liberalidades realizadas em favor dos demandados.
(grifamos alguns trechos da sentença proferida pelo ilustre Dr. Alexandre Kotlinsky Renner)
Porém, a conjectura apresentada na sentença – aproveitar a vontade ao invés de invalidar o negócio jurídico – esbarrou na limitação do art. 549 CCB, que diz:
Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.
Comentando tal dispositivo, LEVENHAGEN reconhece que “a nulidade, porém, como se depreende do artigo em estudo, não alcança toda a doação, mas tão-somente a parte que tenha ultrapassado a metade disponível, ou seja, que tenha invadido a legítima dos herdeiros” (in “Código Civil – Comentários Didáticos”, vol. 4, 5a edição, Atlas, São Paulo, 1996, p. 261)[1].
Nesse momento ingressa o argumento do apelante de que o negócio realizado entre pai e filho excedeu a cota disponível do falecido, malferindo o disposto no art. 1.846 CCB c/c art. 1857 § 1º do CC:
Art. 1.846 CCB – Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.
§ 1º do art. 1857 CCB – A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.
E de fato, na época em que Pedro realizou as doações para Vitalino, seu patrimônio consistia em três imóveis com preços equivalentes:
– matrícula n. 1.374 (doado): com área de 34.125m²;
– matrícula n. 1.376 (doado): com área de 48.875m²; e
– matrícula n. 1.375 (inventariado): com área de 75.250m².
Nestes limites, entende-se que os argumentos defendidos nas rações de apelo não procedem, estando correta a sentença proferida pelo Dr. Alexandre Kotlinsky Renner, que proporcionou à lide a boa justiça do caso concreto:
…. As doações acabaram transferindo 83.000m² (matrículas nº 1.374 e nº 1.376), excedendo o limite legal, assim, em 3.875m².
Pontue-se que, em relação à parcela disponível do patrimônio do de cujus Pedro Bigolin, qual seja, 79.125m², conquanto simulados os negócios jurídicos, na substância e na forma, foram eles válidos, de sorte que, quanto a essa parte, não há que se alvitrar de nulidade.
Avançando na trilha desse raciocínio, restaria a se invalidar, portanto, in casu, somente a parte dos negócios que envolveu a área de 3.875m², equivalente a menos de 5% do total transmitido.
Sucede que, nesse tocante, que constituía parcela quase ínfima do patrimônio indisponível do de cujus, menos de 5%, razoável reconhecer que a doação tenha sido feita a título retributivo ou remuneratório pelos serviços e assistência prestados pelo requerido Adelino Bigolin Sobrinho ao pai Pedro Bigolin. Esse amparo do filho ao pai, notadamente no período em que acometido de grave doença que levou o genitor a óbito, a propósito, acabou incontroverso nos autos (art. 334, II, do CPC), já que em réplica não foi negado pelo autor (fls. 41 a 43), sendo, ainda assim, confirmado pelas duas testemunhas que depuseram no processo (fl. 54).
Daí que, considerando remuneratória a doação dessa área sobressalente de 3,875m², impróprio trazê-la à colação para subsequente partilhamento (art. 2.011 do CC), devendo-se, igualmente nesse quadrante, pois, validar os atos dissimulados praticados.
Com efeito, o douto magistrado “a quo” realizou uma interpretação razoável e ponderada da regra do art. 549 CCB, à luz das características do caso e no espírito dos princípios do Código Civil de 2002, dando ênfase à solidariedade e à função social da família.
Isso posto, nega-se provimento ao recurso.
Des. Luiz Renato Alves da Silva (Revisor) – De acordo com a Relatora.
DES.ª LIÉGE PURICELLI PIRES
A interpretação dada pelo magistrado aos institutos da simulação e da doação, procurando reconhecer a verdadeira intencionalidade do falecido proprietário, é coerente, não agride às normas jurídicas questionadas, nem ao direito de propriedade e, sobretudo, faz justiça ao caso concreto, dando ênfase, como disse V. Excelência, à solidariedade e à função social da família
Acompanho integralmente o voto condutor, para manter a sentença por todos seus fundamentos.
É o voto.
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO – Presidente – Apelação Cível nº 70055882849, Comarca de São Valentim: “À UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.”
Julgador(a) de 1º Grau: ALEXANDRE KOTLINSKY RENNER


Nota:
[1] Citação retirada do Agravo de Instrumento Nº 70029756087, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 25/06/2009
Fonte: Boletim INR nº 6091 – Grupo Serac – São Paulo, 21 de Outubro de 2013